Ricardo Nunes, a gestão privada nas escolas e o 'cherry picking'
Prefeito defendeu medida baseado em apenas no exemplo do Liceu Coração de Jesus No mundo acadêmico, a expressão cherry-picking (em tradução literal, seleção de cerejas) descreve quando alguém pinça apenas evidências que confirmam seu ponto de vista. Isso pode ocorrer deliberadamente (o indivíduo sabe que há outras evidências contrárias, mas opta por ignorá-las) ou de forma inconsciente, num fenômeno psicológico conhecido como raciocínio motivado. De uma forma ou de outra, foi isso que o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, fez ao defender, em entrevista ao repórter Fábio Pescarini na Folha de S. Paulo, a ampliação da gestão privada em escolas públicas. Como no Mais médicos: Camilo quer bolsa para professores preencherem vagas Novo ensino médio: Reorganizar currículo impacta Enem em sete estados Nunes defendeu a ampliação de convênios com o setor privado para assumir a gestão de escolas públicas com base num único exemplo: o Liceu Coração de Jesus. Trata-se de um caso bastante específico: a escola, fundada em 1885 por salesianos, anunciou no ano passado que suspenderia suas atividades. A principal razão seria a degradação causada pela cracolândia no centro de São Paulo. Para evitar o fechamento, o estabelecimento passou a fazer parte da rede municipal, recebendo aportes da prefeitura para atender gratuitamente alunos. No mundo ideal, gestores públicos só anunciariam medidas como essa baseados em bons estudos técnicos. Uma avaliação séria começaria por comparar qual o nível socioeconômico dos alunos, principal fator a explicar o desempenho em testes padronizados. Esses dez pontos de diferença, por exemplo, podem representar mais caso o Liceu atenda hoje, majoritariamente, alunos de famílias mais pobres e menos escolarizadas na comparação com o restante da rede. Mas podem indicar o oposto (ou seja, a comparação pode ser até negativa ao Liceu) caso o perfil de alunos seja, comparativamente, de maior nível socioeconômico. Em resumo, esses dez pontos, sem essa contextualização, dizem muito pouco sobre a qualidade da gestão. E, ainda assim, estamos tratando de uma única escola. Mesmo que o modelo seja bem-sucedido, nada garante que, ao ganhar escala, os resultados serão os mesmos. Pode-se concordar ou não com a solução, mas evitar que um prédio histórico ficasse abandonado numa região que o poder público luta para revitalizar não deixa de ser um argumento válido. Mas não foi essa a carta que Nunes jogou. Ele preferiu citar o fato de os alunos do Liceu — hoje financiado com recursos municipais — apresentarem desempenho médio superior na Prova São Paulo (avaliação padronizada da rede), de 152 pontos, frente à média municipal de 142. O debate sobre a transferência da gestão estatal para entes privados na educação é mundial, e, se formos analisar casos isolados, haverá evidências para todos os gostos. No Pisa, por exemplo, o Reino Unido tem mais de 80% de escolas privadas no ensino médio (a maioria delas recebendo financiamento estatal) e obteve a 14ª colocação em matemática. Só que a vizinha Irlanda, que tem menos de 10% de escolas privadas, está ali bem próxima, na 11ª colocação. Em janeiro de 2024, a OCDE divulgou uma análise mais ampla no desempenho de alunos de redes públicas e privadas no Pisa. A conclusão é de que não havia relação alguma entre o desempenho do país e a proporção de estudantes em escolas privadas. Na média, jovens em colégios particulares se saem melhor do que seus pares, mas, quando essa comparação é feita considerando o nível socioeconômico, a vantagem passa a ser dos alunos de escolas públicas.
Prefeito defendeu medida baseado em apenas no exemplo do Liceu Coração de Jesus No mundo acadêmico, a expressão cherry-picking (em tradução literal, seleção de cerejas) descreve quando alguém pinça apenas evidências que confirmam seu ponto de vista. Isso pode ocorrer deliberadamente (o indivíduo sabe que há outras evidências contrárias, mas opta por ignorá-las) ou de forma inconsciente, num fenômeno psicológico conhecido como raciocínio motivado. De uma forma ou de outra, foi isso que o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, fez ao defender, em entrevista ao repórter Fábio Pescarini na Folha de S. Paulo, a ampliação da gestão privada em escolas públicas. Como no Mais médicos: Camilo quer bolsa para professores preencherem vagas Novo ensino médio: Reorganizar currículo impacta Enem em sete estados Nunes defendeu a ampliação de convênios com o setor privado para assumir a gestão de escolas públicas com base num único exemplo: o Liceu Coração de Jesus. Trata-se de um caso bastante específico: a escola, fundada em 1885 por salesianos, anunciou no ano passado que suspenderia suas atividades. A principal razão seria a degradação causada pela cracolândia no centro de São Paulo. Para evitar o fechamento, o estabelecimento passou a fazer parte da rede municipal, recebendo aportes da prefeitura para atender gratuitamente alunos. No mundo ideal, gestores públicos só anunciariam medidas como essa baseados em bons estudos técnicos. Uma avaliação séria começaria por comparar qual o nível socioeconômico dos alunos, principal fator a explicar o desempenho em testes padronizados. Esses dez pontos de diferença, por exemplo, podem representar mais caso o Liceu atenda hoje, majoritariamente, alunos de famílias mais pobres e menos escolarizadas na comparação com o restante da rede. Mas podem indicar o oposto (ou seja, a comparação pode ser até negativa ao Liceu) caso o perfil de alunos seja, comparativamente, de maior nível socioeconômico. Em resumo, esses dez pontos, sem essa contextualização, dizem muito pouco sobre a qualidade da gestão. E, ainda assim, estamos tratando de uma única escola. Mesmo que o modelo seja bem-sucedido, nada garante que, ao ganhar escala, os resultados serão os mesmos. Pode-se concordar ou não com a solução, mas evitar que um prédio histórico ficasse abandonado numa região que o poder público luta para revitalizar não deixa de ser um argumento válido. Mas não foi essa a carta que Nunes jogou. Ele preferiu citar o fato de os alunos do Liceu — hoje financiado com recursos municipais — apresentarem desempenho médio superior na Prova São Paulo (avaliação padronizada da rede), de 152 pontos, frente à média municipal de 142. O debate sobre a transferência da gestão estatal para entes privados na educação é mundial, e, se formos analisar casos isolados, haverá evidências para todos os gostos. No Pisa, por exemplo, o Reino Unido tem mais de 80% de escolas privadas no ensino médio (a maioria delas recebendo financiamento estatal) e obteve a 14ª colocação em matemática. Só que a vizinha Irlanda, que tem menos de 10% de escolas privadas, está ali bem próxima, na 11ª colocação. Em janeiro de 2024, a OCDE divulgou uma análise mais ampla no desempenho de alunos de redes públicas e privadas no Pisa. A conclusão é de que não havia relação alguma entre o desempenho do país e a proporção de estudantes em escolas privadas. Na média, jovens em colégios particulares se saem melhor do que seus pares, mas, quando essa comparação é feita considerando o nível socioeconômico, a vantagem passa a ser dos alunos de escolas públicas.
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