Artigo: Planos, preparação, e o direito penal

Iniciada ou não a execução do crime, o assustador plano para matar um ministro do STF e o presidente eleito podem ser inseridos dentro do contexto da tentativa de realizar um golpe de Estado ou de abolir o Estado Democrático de Direito Pensar em matar alguém é crime? Sem dúvida, não. Assim como não é crime cogitar do cometimento de qualquer outra figura típica do Código Penal ou de leis penais extravagantes. E, em relação à maior parte dos crimes, entre eles o homicídio, também não é punível o planejamento, ainda que minucioso, ou mesmo a preparação da ação a ser colocada em prática. Trata-se da conhecida discussão a respeito do iter criminis, ou seja, do percurso do agente desde a cogitação de um crime, passando pelos atos preparatórios e a execução, até chegar à consumação. O desafio, muitas vezes, se dá na demarcação entre a preparação, não punível, e o início da execução, momento que caracteriza o início da tentativa e, portanto, da punibilidade. Artigo: O STF e o sistema prisional: a volta da esperança Como tudo em direito, não faltam teorias em auxílio da tarefa. Para ficar apenas nas mais conhecidas e utilizadas no Brasil, e usando o crime de homicídio como exemplo, tem-se: i) a teoria objetiva formal (a tentativa é o início da execução da ação descrita no tipo penal “matar alguém”, ou seja, acionar o gatilho de arma apontada para a vítima); e ii) a teoria objetiva material (a tentativa já consiste em ação imediatamente anterior à realização do tipo penal que seja produtora de perigo direto para o bem jurídico vida, ou seja, apontar a arma para alguém com o propósito de atirar). A tentativa de homicídio só passa a ser punível quando a conduta prevista no tipo penal (“matar alguém”) foi ao menos iniciada, ou seja, quando se iniciou a execução. Assim, quem pensa em matar alguém, combina um plano com possíveis coautores e compra as armas que serão utilizadas na prática do crime, ainda não poderá ser punido por homicídio. Quem aponta a arma para a vítima já poderia ser e quem aperta o gatilho da arma certamente já estaria iniciando a execução do crime. Ocorrendo o resultado morte, a tentativa se transforma em consumação. Artigo: Processo versus Justiça Por outro lado, a legislação penal prevê ainda a figura da desistência voluntária, que tem lugar quando o agente já iniciou a tentativa, mas voluntariamente desiste de prosseguir na execução do crime. Por razões de política criminal, a conduta não é punida. A diferença dessa situação para a tentativa punível reside no elemento voluntariedade. A tentativa é punível se o crime não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do agente. Saber se um crime deixou de se consumar por comportamento voluntário do agente ou por circunstâncias alheias à sua vontade depende de profunda incursão em matéria de prova, o que não se fará aqui. Mas nada disso quer dizer que a preparação de um homicídio seja necessariamente um indiferente penal. Não há dúvida de que, iniciada ou não a execução do crime, havendo ou não desistência voluntária da ação, o assustador plano para matar um ministro do Supremo Tribunal Federal e candidatos eleitos à Presidência e à Vice-Presidência da República podem ser inseridos dentro do contexto da tentativa de realizar um golpe de Estado ou de abolir o Estado Democrático de Direito. Ambos os tipos penais, previstos, respectivamente, nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal brasileiro, têm entre seus elementos típicos a prática de atos de violência. E como estamos falando de crime de perigo, tendo o legislador previsto que a tentativa de alcançar o resultado — golpe de Estado ou abolição do Estado Democrático de Direito — já é previsto como crime consumado, não é necessário que os atos de violência sejam aperfeiçoados ou tenham sua execução iniciada, como crimes autônomos, mas apenas que se insiram na execução da tentativa de um golpe de Estado ou da abolição do Estado Democrático de Direito. Por fim, uma palavra sobre o crime de terrorismo, aventado aqui e ali a respeito do episódio que é pano de fundo deste artigo. Embora o legislador tenha previsto explicitamente a ação de atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa como um dos possíveis meios de execução do crime, previu também que a finalidade da conduta seja a de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. Não parece ser o caso de que se trata. De acordo com toda a narrativa e as provas tornadas públicas, havia um objetivo bastante planejado e preciso. Longe de se pretender apenas gerar pânico generalizado, o que se visava era impedir a posse do governo legitimamente eleito, instalando-se governo de exceção. De terrorismo, portanto, não se trata. Assim, ainda que não sejam puníveis como crimes autônomos os homicídios planejados, a ação engendrada é de inaudita gravidade e bem denota o esgarçamento institucional e de democracia que, lamentavelmente, o país enfrenta atualmente. *Fernanda Tórtima

Nov 22, 2024 - 15:25
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Artigo: Planos, preparação, e o direito penal

Iniciada ou não a execução do crime, o assustador plano para matar um ministro do STF e o presidente eleito podem ser inseridos dentro do contexto da tentativa de realizar um golpe de Estado ou de abolir o Estado Democrático de Direito Pensar em matar alguém é crime? Sem dúvida, não. Assim como não é crime cogitar do cometimento de qualquer outra figura típica do Código Penal ou de leis penais extravagantes. E, em relação à maior parte dos crimes, entre eles o homicídio, também não é punível o planejamento, ainda que minucioso, ou mesmo a preparação da ação a ser colocada em prática. Trata-se da conhecida discussão a respeito do iter criminis, ou seja, do percurso do agente desde a cogitação de um crime, passando pelos atos preparatórios e a execução, até chegar à consumação. O desafio, muitas vezes, se dá na demarcação entre a preparação, não punível, e o início da execução, momento que caracteriza o início da tentativa e, portanto, da punibilidade. Artigo: O STF e o sistema prisional: a volta da esperança Como tudo em direito, não faltam teorias em auxílio da tarefa. Para ficar apenas nas mais conhecidas e utilizadas no Brasil, e usando o crime de homicídio como exemplo, tem-se: i) a teoria objetiva formal (a tentativa é o início da execução da ação descrita no tipo penal “matar alguém”, ou seja, acionar o gatilho de arma apontada para a vítima); e ii) a teoria objetiva material (a tentativa já consiste em ação imediatamente anterior à realização do tipo penal que seja produtora de perigo direto para o bem jurídico vida, ou seja, apontar a arma para alguém com o propósito de atirar). A tentativa de homicídio só passa a ser punível quando a conduta prevista no tipo penal (“matar alguém”) foi ao menos iniciada, ou seja, quando se iniciou a execução. Assim, quem pensa em matar alguém, combina um plano com possíveis coautores e compra as armas que serão utilizadas na prática do crime, ainda não poderá ser punido por homicídio. Quem aponta a arma para a vítima já poderia ser e quem aperta o gatilho da arma certamente já estaria iniciando a execução do crime. Ocorrendo o resultado morte, a tentativa se transforma em consumação. Artigo: Processo versus Justiça Por outro lado, a legislação penal prevê ainda a figura da desistência voluntária, que tem lugar quando o agente já iniciou a tentativa, mas voluntariamente desiste de prosseguir na execução do crime. Por razões de política criminal, a conduta não é punida. A diferença dessa situação para a tentativa punível reside no elemento voluntariedade. A tentativa é punível se o crime não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do agente. Saber se um crime deixou de se consumar por comportamento voluntário do agente ou por circunstâncias alheias à sua vontade depende de profunda incursão em matéria de prova, o que não se fará aqui. Mas nada disso quer dizer que a preparação de um homicídio seja necessariamente um indiferente penal. Não há dúvida de que, iniciada ou não a execução do crime, havendo ou não desistência voluntária da ação, o assustador plano para matar um ministro do Supremo Tribunal Federal e candidatos eleitos à Presidência e à Vice-Presidência da República podem ser inseridos dentro do contexto da tentativa de realizar um golpe de Estado ou de abolir o Estado Democrático de Direito. Ambos os tipos penais, previstos, respectivamente, nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal brasileiro, têm entre seus elementos típicos a prática de atos de violência. E como estamos falando de crime de perigo, tendo o legislador previsto que a tentativa de alcançar o resultado — golpe de Estado ou abolição do Estado Democrático de Direito — já é previsto como crime consumado, não é necessário que os atos de violência sejam aperfeiçoados ou tenham sua execução iniciada, como crimes autônomos, mas apenas que se insiram na execução da tentativa de um golpe de Estado ou da abolição do Estado Democrático de Direito. Por fim, uma palavra sobre o crime de terrorismo, aventado aqui e ali a respeito do episódio que é pano de fundo deste artigo. Embora o legislador tenha previsto explicitamente a ação de atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa como um dos possíveis meios de execução do crime, previu também que a finalidade da conduta seja a de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública. Não parece ser o caso de que se trata. De acordo com toda a narrativa e as provas tornadas públicas, havia um objetivo bastante planejado e preciso. Longe de se pretender apenas gerar pânico generalizado, o que se visava era impedir a posse do governo legitimamente eleito, instalando-se governo de exceção. De terrorismo, portanto, não se trata. Assim, ainda que não sejam puníveis como crimes autônomos os homicídios planejados, a ação engendrada é de inaudita gravidade e bem denota o esgarçamento institucional e de democracia que, lamentavelmente, o país enfrenta atualmente. *Fernanda Tórtima é advogada criminal, mestre em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt am Main.

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