'Trump deixa de ser um estranho acidente na História', avalia professor da Universidade Johns Hopkins

Para o cientista político Yascha Mounk, vitória do republicano é sintoma da crise institucional que afeta o âmago do Partido Democrata e envia recado importante para figuras como Putin e Bolsonaro Se até terça-feira a eleição de Donald Trump em 2016 poderia ser considerada uma anomalia na História americana, a vitória do republicano — com direito ao seu partido reconquistando o Senado e se encaminhando para manter o controle da Câmara — é resultado de um fenômeno muito mais profundo, que se alia ao descontentamento do eleitor com a economia: a crise das instituições. A avaliação é do cientista político alemão Yascha Mounk, doutor na Universidade Harvard e professor na Johns Hopkins. Em entrevista ao GLOBO, Mounk analisa os motivos que levaram à consagração do magnata, mesmo com a democracia figurando entre as principais preocupações dos eleitores nas pesquisas, e qual recado o resultado das urnas envia para lideranças autoritárias mundo afora — do presidente russo, Vladimir Putin, ao ex-presidente Jair Bolsonaro. De pária a presidente eleito: Como Trump (re)construiu seu caminho de volta à Casa Branca Análise: É a economia, estúpido, que encaminha Trump à Casa Branca Quais fatores estão por trás da vitória de Trump na noite passada? Certamente a inflação alta nos últimos quatro anos foi uma algema para Kamala Harris. Mas há um fator mais importante: Trump é razoavelmente impopular, a maioria dos americanos o vê como extremista demais, mas Kamala e o Partido Democrata também são. Os americanos comuns não confiam mais nas universidades, nas corporações e nos jornais, que têm sido associados ao Partido Democrata. Até alguns dias atrás, ainda era possível esperar que Trump fosse uma espécie de nota de rodapé na História americana. Embora ele tenha sido bastante dominante na política nos últimos 10 anos, as pessoas se lembrariam da eleição de 2016 como um estranho acidente na História e, após o Partido Republicano ser derrotado em 2018, 2020 e 2022, Trump seria finalmente expulso do sistema em 2024. Mas a sua vitória decisiva ontem, de forma muito mais convincente e apaixonada desta vez, põe fim a essa esperança. Este é o verdadeiro início da era Trump. O Partido Republicano será moldado à sua imagem e semelhança e ele poderá impor sua vontade política nos EUA de forma muito significativa. Questão demográfica: Trump avança em estados democratas, e apoio de eleitorado latino, negro e rural tem papel importante em vitória nos EUA Por que a democracia não foi prioridade para os eleitores americanos mesmo depois do ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021? Parte do problema com os ataques à democracia é a sensação relativamente abstrata de que eles podem afetar jornalistas, políticos, mas não pessoas comuns. Mas no momento em que há um impacto corrosivo no sistema, por exemplo, quando a falta de freios e contrapesos leva a uma política econômica ruim e a uma inflação alta, geralmente é tarde demais para desfazer os danos. Trump, no entanto, se apropria do tema de forma inteligente. Na pesquisa de boca de urna na Pensilvânia, entre os eleitores que consideravam a ameaça à democracia importante na hora do voto, a maioria apoiava Trump, acreditando que Kamala era uma ameaça maior à democracia do que ele. Entenda: As pesquisas erraram ao não prever a vitória com folga de Trump? Trump conseguiu avançar entre eleitorados historicamente democratas, como hispânicos, negros e jovens. Quais estratégias ele usou para isso? Os democratas e grande parte da classe jornalística dos EUA estão em uma profunda crise epistemológica. Os latinos, por exemplo, não se veem como parte de uma grande coalizão de não-brancos e são céticos em relação a muitas das propagandas e slogans adotados pelo Partido Democrata nos últimos anos. Isso ajuda a explicar por que houve um grande apoio aos republicanos partindo desse grupo demográfico na Flórida, onde muitos vieram de países socialistas como Venezuela e Cuba, mas também na Pensilvânia, em alguns distritos do Texas e do Novo México... Esse é um realinhamento demográfico muito significativo do eleitorado americano, que destoa do que muitos estrategistas eleitorais e cientistas políticos esperavam nos últimos 10 anos. Qual é o futuro do Partido Democrata daqui para frente? O Partido Democrata tem agora dois caminhos. O primeiro é reativar o que aprendeu de 2016 a 2020 e fazer oposição não ao próprio Donald Trump, mas a seus apoiadores e tudo o que ele representa. Agir como se estivéssemos na Segunda Guerra Mundial lutando contra um governo fascista. O problema dessa estratégia é que ela falhou na primeira vez. Os democratas conseguiram tirar Trump do poder pela via democrática em 2020, mas não conseguiram formar uma coalizão ampla o suficiente para impedi-lo de voltar maior do que da primeira vez. O segundo caminho — que é mais difícil, mas é a única esperança realista de superar a era de Trump — é se olhar no espelho e tentar entender por que os americanos se tornaram tão profundamente d

Nov 7, 2024 - 05:16
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'Trump deixa de ser um estranho acidente na História', avalia professor da Universidade Johns Hopkins

Para o cientista político Yascha Mounk, vitória do republicano é sintoma da crise institucional que afeta o âmago do Partido Democrata e envia recado importante para figuras como Putin e Bolsonaro Se até terça-feira a eleição de Donald Trump em 2016 poderia ser considerada uma anomalia na História americana, a vitória do republicano — com direito ao seu partido reconquistando o Senado e se encaminhando para manter o controle da Câmara — é resultado de um fenômeno muito mais profundo, que se alia ao descontentamento do eleitor com a economia: a crise das instituições. A avaliação é do cientista político alemão Yascha Mounk, doutor na Universidade Harvard e professor na Johns Hopkins. Em entrevista ao GLOBO, Mounk analisa os motivos que levaram à consagração do magnata, mesmo com a democracia figurando entre as principais preocupações dos eleitores nas pesquisas, e qual recado o resultado das urnas envia para lideranças autoritárias mundo afora — do presidente russo, Vladimir Putin, ao ex-presidente Jair Bolsonaro. De pária a presidente eleito: Como Trump (re)construiu seu caminho de volta à Casa Branca Análise: É a economia, estúpido, que encaminha Trump à Casa Branca Quais fatores estão por trás da vitória de Trump na noite passada? Certamente a inflação alta nos últimos quatro anos foi uma algema para Kamala Harris. Mas há um fator mais importante: Trump é razoavelmente impopular, a maioria dos americanos o vê como extremista demais, mas Kamala e o Partido Democrata também são. Os americanos comuns não confiam mais nas universidades, nas corporações e nos jornais, que têm sido associados ao Partido Democrata. Até alguns dias atrás, ainda era possível esperar que Trump fosse uma espécie de nota de rodapé na História americana. Embora ele tenha sido bastante dominante na política nos últimos 10 anos, as pessoas se lembrariam da eleição de 2016 como um estranho acidente na História e, após o Partido Republicano ser derrotado em 2018, 2020 e 2022, Trump seria finalmente expulso do sistema em 2024. Mas a sua vitória decisiva ontem, de forma muito mais convincente e apaixonada desta vez, põe fim a essa esperança. Este é o verdadeiro início da era Trump. O Partido Republicano será moldado à sua imagem e semelhança e ele poderá impor sua vontade política nos EUA de forma muito significativa. Questão demográfica: Trump avança em estados democratas, e apoio de eleitorado latino, negro e rural tem papel importante em vitória nos EUA Por que a democracia não foi prioridade para os eleitores americanos mesmo depois do ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021? Parte do problema com os ataques à democracia é a sensação relativamente abstrata de que eles podem afetar jornalistas, políticos, mas não pessoas comuns. Mas no momento em que há um impacto corrosivo no sistema, por exemplo, quando a falta de freios e contrapesos leva a uma política econômica ruim e a uma inflação alta, geralmente é tarde demais para desfazer os danos. Trump, no entanto, se apropria do tema de forma inteligente. Na pesquisa de boca de urna na Pensilvânia, entre os eleitores que consideravam a ameaça à democracia importante na hora do voto, a maioria apoiava Trump, acreditando que Kamala era uma ameaça maior à democracia do que ele. Entenda: As pesquisas erraram ao não prever a vitória com folga de Trump? Trump conseguiu avançar entre eleitorados historicamente democratas, como hispânicos, negros e jovens. Quais estratégias ele usou para isso? Os democratas e grande parte da classe jornalística dos EUA estão em uma profunda crise epistemológica. Os latinos, por exemplo, não se veem como parte de uma grande coalizão de não-brancos e são céticos em relação a muitas das propagandas e slogans adotados pelo Partido Democrata nos últimos anos. Isso ajuda a explicar por que houve um grande apoio aos republicanos partindo desse grupo demográfico na Flórida, onde muitos vieram de países socialistas como Venezuela e Cuba, mas também na Pensilvânia, em alguns distritos do Texas e do Novo México... Esse é um realinhamento demográfico muito significativo do eleitorado americano, que destoa do que muitos estrategistas eleitorais e cientistas políticos esperavam nos últimos 10 anos. Qual é o futuro do Partido Democrata daqui para frente? O Partido Democrata tem agora dois caminhos. O primeiro é reativar o que aprendeu de 2016 a 2020 e fazer oposição não ao próprio Donald Trump, mas a seus apoiadores e tudo o que ele representa. Agir como se estivéssemos na Segunda Guerra Mundial lutando contra um governo fascista. O problema dessa estratégia é que ela falhou na primeira vez. Os democratas conseguiram tirar Trump do poder pela via democrática em 2020, mas não conseguiram formar uma coalizão ampla o suficiente para impedi-lo de voltar maior do que da primeira vez. O segundo caminho — que é mais difícil, mas é a única esperança realista de superar a era de Trump — é se olhar no espelho e tentar entender por que os americanos se tornaram tão profundamente desconfiados das instituições. Questionar por que os democratas, que deveriam ser o partido da esquerda, se tornaram o partido das áreas ricas e dos mais escolarizados nos Estados Unidos? Tudo isso leva à necessidade da legenda de abraçar a grande maioria da população e, ao mesmo tempo, reconhecer que isso não se estende apenas às políticas identitárias às quais eles se voltaram nos últimos anos. Initial plugin text Que mensagem a vitória de Trump envia a líderes autoritários ao redor do mundo? Tenho certeza de que os líderes autoritários de todo o mundo provavelmente estão pensando em que tipo de barganha podem fazer com Trump para atingir seus objetivos. Putin está esperando a deposição do governo ucraniano e conquistar o restante dos territórios do país. Xi Jinping [presidente da China] acha que pode avançar em seu objetivo de reunificação com Taiwan. No caso de populistas como Jair Bolsonaro e Viktor Órban [premier da Hungria], está claro que Trump os vê como seus parceiros preferidos, que mais se assemelham a ele. Isso vai encorajar essas lideranças e acrescentar um elemento perigoso nas eleições nesses países: em vez de precisarem demostrar que eles não provocariam o isolamento dos seus países, agora podem argumentar que a sua eleição ajudaria a estreitar os laços com a democracia mais poderosa do mundo. Galerias Relacionadas O que o mundo pode esperar de um segundo mandato de Trump? Trump é irresponsável e imprevisível, principalmente na política externa. A única constante clara é que ele tem uma atitude muito transacional em relação a seus aliados e inimigos, buscando acordos que julga serem do interesse dos EUA apenas. É muito difícil prever o que isso pode significar para alguns conflitos importantes no mundo. Será que ele vai fazer uma negociação difícil com Putin e chegar a algum tipo de acordo de paz que realmente permita que a Ucrânia mantenha uma parte de seu país ou será que ele vai vender a Ucrânia e permitir que a Rússia efetivamente tome o território em troca de algum favor significativo? Não sei, e não tenho certeza nem se Trump sabe a resposta.

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