Primeira fotógrafa negra profissional do Brasil, Lita Cerqueira celebra 50 anos de trabalho com mostra em Salvador

A exposição "O povo negro é o meu povo – Lita Cerqueira, 50 anos de fotografia' está em cartaz até 20 de dezembro Aos 72 anos, Lita Cerqueira reúne em seu acervo mais de 50 mil imagens ao longo de meio século de trajetória como a primeira fotógrafa negra profissional do Brasil. Atuando desde 1969, a soteropolitana ficou conhecida pelas fotos em preto e branco que registram cenas urbanas especialmente em Salvador e pelos retratos intimistas de estrelas da música, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Milton Nascimento. "Eu sempre fui tiete. Quando eu era mais jovem, ia a muitos shows. Criei grandes amizades fotografando. Teve um show de Caetano que eu ia todo dia, já entrava de graça", diz ela, que há anos mora no Rio. A mostra “O Povo Negro é o Meu Povo – Lita Cerqueira, 50 Anos de Fotografia”, organizada em sete núcleos, faz um apanhado da carreira de Lita, em cartaz na CAIXA Cultural Salvador até 20 de dezembro. A exposição destaca temas como ancestralidade, pertencimento e valorização da cultura negra. Ela iniciou a vida artística como atriz de teatro e, em paralelo, descobriu a fotografia. Desde então, registrou festas populares, documentou profissões, produziu cartões-postais e chegou a fotografar os bastidores de filmes como “Bahia de todos os sambas”, de Paulo César Saraceni e Leon Hirszman; “Pagú”, de Júlio Bressane; e do programa “Abertura”, dirigido e apresentado por Glauber Rocha. A mostra, com curadoria de Janaína Damaceno, é composta por 55 obras divididas em núcleos. O primeiro eixo da exposição é “Andar com fé”, que retrata o sagrado afro-brasileiro. No segundo, “Para o mundo ficar Odara”, o destaque é a beleza negra. Em “Zum zum zum”, as fotos documentam rodas de capoeira, enquanto em “Vou fazer minha folia”, o tema é o carnaval. No quinto eixo, “Filhas de Oxum”, o protagonismo é das festas populares. Já nos núcleos “Doces Bárbaros” e “Atraca que o Naná vem chegando” ficam as fotos de momentos em que a própria Lita define como tietagem de grandes nomes da MPB. Em conversa com ELA, a fotógrafa destaca a importância da exposição para o reconhecimento da sua trajetória. “Significa muito para mim que a exposição seja feita na minha terra, na cidade de Salvador, e que tenha um pouco de tudo da minha carreira.” Você tem fotos que vão de transeuntes das ruas de Salvador a ícones da cultura popular brasileira. O fotografado muda o processo de fazer a foto? Eu geralmente tenho intimidade com a pessoa fotografada. Eu não chego já para fotografar. Eu converso, fico amiga. Desde o começo eu faço isso. Eu não sei fazer foto sem essa intimidade. Eu gosto de conhecer as pessoas, crianças, por exemplo, que eu vejo na feira. Por exemplo, quando eu encontrei aquela senhora da frigideira, depois que voltei lá em Coqueiros, levei uma foto ampliada para ela. Eu fico íntima, não é só pra eu poder fotografar. Às vezes acontece de construir uma amizade. Em festa de rua, essas coisas, você não planeja, mas tem que chegar com calma se for fazer uma foto. Sobre os cantores, eu sempre fui tiete. Quando eu era mais jovem, eu ia a muitos shows. Criei grandes amizades fotografando. Teve um show de Caetano que eu ia todo dia, eu podia entrar de graça. Um dia eu pensei, será que eu virei fotógrafo para entrar em show de graça? Porque não tem coisa melhor (risos). Nesses 50 anos de carreira, você já fotografou em diversos lugares e até mora no Rio hoje, mas Salvador permanece como um cenário frequente na sua obra. Você diria que esse traço é uma forma de firmar uma identidade? Eu moro aqui no Rio há 50 anos, mas nunca desisti de ir a Salvador no verão. Aqui eu faço um trabalho mais versátil. Eu fazia fotos das crianças que eram filhas dos diretores, coisas assim… Trabalho para sobreviver. Foi muito bom, mas é um trabalho mais pesado. Em Salvador, eu ia todo ano e passava três meses lá. Ia para Cachoeira, ficava na Ilha de Itaparica. Nasci na Bahia, tenho uma família enorme lá. Fotografar lá é uma coisa natural para mim. Por isso significa muito para mim que a exposição seja feita na minha terra, na cidade de Salvador, e que tenha um pouco de tudo da minha carreira. Questões de raça, identidade e pertencimento também são importantes no seu trabalho. Você sofreu preconceito durante a carreira? Acha que hoje a cultura do povo negro é mais valorizada? Todo dia eu sinto o preconceito. Moro num lugar que só tem branco e rico, mas se você ficar olhando o preconceito e o racismo, você não vive. Resolvi ser mais inteligente. Graças a Deus, temos conseguido mostrar a cultura do negro. Lembro de ter fotografado a Lélia Gonzalez em uma homenagem a ela no SESC em São Paulo. Foi bom ver que há várias mulheres negras que são referência. Estamos melhorando, acho que educação é tudo. Agora está melhor, resolvemos de um jeito prático. Isso é do meu jeito, nada que é ruim eu quero lembrar, prefiro assim para não sofrer. Às vezes eu brinco com o porteiro: “Seu Manoel, eu sou a única preta que mora aqui” (Risos)

Nov 20, 2024 - 05:32
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Primeira fotógrafa negra profissional do Brasil, Lita Cerqueira celebra 50 anos de trabalho com mostra em Salvador

A exposição "O povo negro é o meu povo – Lita Cerqueira, 50 anos de fotografia' está em cartaz até 20 de dezembro Aos 72 anos, Lita Cerqueira reúne em seu acervo mais de 50 mil imagens ao longo de meio século de trajetória como a primeira fotógrafa negra profissional do Brasil. Atuando desde 1969, a soteropolitana ficou conhecida pelas fotos em preto e branco que registram cenas urbanas especialmente em Salvador e pelos retratos intimistas de estrelas da música, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Milton Nascimento. "Eu sempre fui tiete. Quando eu era mais jovem, ia a muitos shows. Criei grandes amizades fotografando. Teve um show de Caetano que eu ia todo dia, já entrava de graça", diz ela, que há anos mora no Rio. A mostra “O Povo Negro é o Meu Povo – Lita Cerqueira, 50 Anos de Fotografia”, organizada em sete núcleos, faz um apanhado da carreira de Lita, em cartaz na CAIXA Cultural Salvador até 20 de dezembro. A exposição destaca temas como ancestralidade, pertencimento e valorização da cultura negra. Ela iniciou a vida artística como atriz de teatro e, em paralelo, descobriu a fotografia. Desde então, registrou festas populares, documentou profissões, produziu cartões-postais e chegou a fotografar os bastidores de filmes como “Bahia de todos os sambas”, de Paulo César Saraceni e Leon Hirszman; “Pagú”, de Júlio Bressane; e do programa “Abertura”, dirigido e apresentado por Glauber Rocha. A mostra, com curadoria de Janaína Damaceno, é composta por 55 obras divididas em núcleos. O primeiro eixo da exposição é “Andar com fé”, que retrata o sagrado afro-brasileiro. No segundo, “Para o mundo ficar Odara”, o destaque é a beleza negra. Em “Zum zum zum”, as fotos documentam rodas de capoeira, enquanto em “Vou fazer minha folia”, o tema é o carnaval. No quinto eixo, “Filhas de Oxum”, o protagonismo é das festas populares. Já nos núcleos “Doces Bárbaros” e “Atraca que o Naná vem chegando” ficam as fotos de momentos em que a própria Lita define como tietagem de grandes nomes da MPB. Em conversa com ELA, a fotógrafa destaca a importância da exposição para o reconhecimento da sua trajetória. “Significa muito para mim que a exposição seja feita na minha terra, na cidade de Salvador, e que tenha um pouco de tudo da minha carreira.” Você tem fotos que vão de transeuntes das ruas de Salvador a ícones da cultura popular brasileira. O fotografado muda o processo de fazer a foto? Eu geralmente tenho intimidade com a pessoa fotografada. Eu não chego já para fotografar. Eu converso, fico amiga. Desde o começo eu faço isso. Eu não sei fazer foto sem essa intimidade. Eu gosto de conhecer as pessoas, crianças, por exemplo, que eu vejo na feira. Por exemplo, quando eu encontrei aquela senhora da frigideira, depois que voltei lá em Coqueiros, levei uma foto ampliada para ela. Eu fico íntima, não é só pra eu poder fotografar. Às vezes acontece de construir uma amizade. Em festa de rua, essas coisas, você não planeja, mas tem que chegar com calma se for fazer uma foto. Sobre os cantores, eu sempre fui tiete. Quando eu era mais jovem, eu ia a muitos shows. Criei grandes amizades fotografando. Teve um show de Caetano que eu ia todo dia, eu podia entrar de graça. Um dia eu pensei, será que eu virei fotógrafo para entrar em show de graça? Porque não tem coisa melhor (risos). Nesses 50 anos de carreira, você já fotografou em diversos lugares e até mora no Rio hoje, mas Salvador permanece como um cenário frequente na sua obra. Você diria que esse traço é uma forma de firmar uma identidade? Eu moro aqui no Rio há 50 anos, mas nunca desisti de ir a Salvador no verão. Aqui eu faço um trabalho mais versátil. Eu fazia fotos das crianças que eram filhas dos diretores, coisas assim… Trabalho para sobreviver. Foi muito bom, mas é um trabalho mais pesado. Em Salvador, eu ia todo ano e passava três meses lá. Ia para Cachoeira, ficava na Ilha de Itaparica. Nasci na Bahia, tenho uma família enorme lá. Fotografar lá é uma coisa natural para mim. Por isso significa muito para mim que a exposição seja feita na minha terra, na cidade de Salvador, e que tenha um pouco de tudo da minha carreira. Questões de raça, identidade e pertencimento também são importantes no seu trabalho. Você sofreu preconceito durante a carreira? Acha que hoje a cultura do povo negro é mais valorizada? Todo dia eu sinto o preconceito. Moro num lugar que só tem branco e rico, mas se você ficar olhando o preconceito e o racismo, você não vive. Resolvi ser mais inteligente. Graças a Deus, temos conseguido mostrar a cultura do negro. Lembro de ter fotografado a Lélia Gonzalez em uma homenagem a ela no SESC em São Paulo. Foi bom ver que há várias mulheres negras que são referência. Estamos melhorando, acho que educação é tudo. Agora está melhor, resolvemos de um jeito prático. Isso é do meu jeito, nada que é ruim eu quero lembrar, prefiro assim para não sofrer. Às vezes eu brinco com o porteiro: “Seu Manoel, eu sou a única preta que mora aqui” (Risos). Já me passei por empregada algumas vezes para evitar estresse. Você considera seu trabalho engajado na valorização da cultura negra ou das mulheres? Eu gostaria até que fosse um pouco mais político. Mas eu não consigo ser política radical. Por exemplo, participar de encontros só de fotógrafos negras, não é que eu não aceito, é que eu me misturo. Eu sou incolor (Risos). Acho que a gente tem que conviver com as pessoas, não com a cor da pessoa. Ainda fotografa? Acha que seu olhar mudou? Eu fotografo ainda, claro. Fotografo digital também. Eu tenho assistente digital, eu não sei fazer bem coisas digitais. Então, para não ficar agoniada, resolvi ter um assistente a Andréa, que é uma paulista, fotógrafa ótima. Para mim é muito mais fácil assim. E o olhar não muda, permanece. Agora, o mundo é que muda. Hoje em dia, eu não posso fazer a foto que eu fiz da época 76, 94, porque a multidão não vai deixar de ter ângulo. Mas eu ainda gosto de fotografar no interior. Eu gosto muito de ir pra feira. Adoro fotografar em Cachoeira. Tem alguma foto que considere mais marcante? Para mim são todas especiais.

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