Fim de uma luta e início de outra: doação de cérebro de Maguila ajudará no combate à "demência pugilística"

Contribuição coloca luz em estudos sobre doença neurológica que atinge atletas de esporte de contato, mas que poucos desses profissionais conhecem; morte do boxeador completa um mês O falecimento da lenda nocauteadora do boxe brasileiro, José Adilson Rodrigues dos Santos, o Maguila, completa um mês. O multicampeão peso-pesado era reconhecido por seu carisma e bondade fora dos ringues. Com seu último ato, não foi diferente: ele autorizou a doação de seu cérebro ao "Banco de Cérebros", como é conhecido o projeto do Biobanco da Faculdade de Medicina da USP, para estudos sobre envelhecimento. A iniciativa realiza pesquisas sobre a Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), uma doença ainda sem cura que afetou Maguila nos últimos 18 anos de sua vida, assim como muitos outros atletas de esportes de contato, como MMA, futebol americano e futebol. — A pesquisa em cérebros como os de Éder Jofre, Hilderaldo Luís Bellini e Maguila é muito importante para compreender os mecanismos de lesão que levam ao desenvolvimento da Encefalopatia Traumática Crônica e, inclusive, entender se há diferenças entre o cérebro de um pugilista peso-pesado, de um peso-leve ou galo e de um jogador de futebol — explica o médico e professor de neurologia da USP, Renato Anghinah, que tratou Maguila nos últimos anos de vida. Quanto mais cérebros, especialmente de ex-atletas, mais rapidamente os pesquisadores poderão identificar as consequências das lesões cerebrais causadas por traumas na cabeça. Isso permitirá verificar se é necessário adotar cuidados específicos, considerando o esporte, a categoria e o perfil dos profissionais monitorados, para prevenir o desenvolvimento da doença. Além disso, o Biobanco também estuda outras doenças neurológicas, como Alzheimer e Parkinson, buscando formas de identificar essas patologias antes que atinjam estágios avançados. Atualmente, a ETC só pode ser diagnosticada com precisão após a morte do indivíduo. Tantas pesquisas só são possíveis graças aos cerca de 5 mil cérebros já doados à universidade. O acervo do Biobanco é o segundo maior do mundo, atrás apenas da Universidade de Harvard, que iniciou seu programa em 1978. Já a USP começou em 2005, mas cresceu rapidamente por possuir um dos maiores centros de autópsias do mundo, o Serviço de Verificação de Óbitos da Capital. Esse centro viabiliza a comunicação com os familiares e a transferência do órgão dos falecidos em tempo hábil. O processo precisa ser realizado em até 14 horas após o óbito; no caso de Maguila, foi concluído em menos tempo. — A esposa do Maguila, Irani, nos avisou rapidamente e acionou a equipe para garantir que a vontade dele fosse cumprida — revela o neurologista. Maguila ao lado de um dos filhos, Junior, e da mulher Irani, em um dos últimos registros Reprodução Após a coleta, o cérebro é dividido e passa por um processo de conservação antes de ser utilizado nas pesquisas. Mesmo sendo uma doença que afeta principalmente atletas, a maioria deles desconhece os riscos da ETC e ainda menos a importância da doação de seus órgãos para estudos científicos. Para mudar esse cenário, foi criada a Fundação Legado da Concussão (CLF, na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos. — Ele pode desenvolver depressão, ansiedade ou vícios, como beber diariamente, e você pode achar que ele se perdeu ou tem problemas mentais. Mas, na verdade, trata-se de uma doença biológica, e ele não tem controle sobre isso — explica Rose Gracie, conselheira nacional da fundação e responsável por conscientizar atletas sobre os riscos da ETC e a relevância da doação do cérebro para pesquisas. Rose Gracie ao lado de Chris Norwinski (esquerda), fundador da organização Concussion Legacy Foundation e o ex-diretor de comunicações, Tyler Maland Divulgação De acordo com Anghinah, estudos recentes sobre a NFL indicam que a patologia afeta 20% dos ex-atletas, embora esse número possa ser ainda maior. Em setembro, pesquisadores da Instituição de Saúde Mass General Brigham, da Escola Médica de Harvard, entrevistaram quase 2 mil ex-jogadores da NFL. O estudo revelou que 35% acreditavam ter ETC, e 25% desses relataram pensamentos suicidas frequentes — percentual significativamente maior que os 5% entre aqueles que não acreditavam ter a condição. Quarterback do Miami Dolphins, Tua Tagovailoa recebeu diversos pedidos para se aposentar da NFL após sofrer a terceira concussão registrada em sua carreira Carmen Mandato/AFP Rose, membro de uma das famílias mais conhecidas do mundo da luta, acredita que a notoriedade de Maguila pode ser fundamental para atrair mais doadores. Ela relata que já conseguiu incentivar centenas de atletas a se tornarem doadores. Atualmente, há mais de 1.200 cérebros de ex-profissionais armazenados no biobanco. — É muito importante que todas as pessoas, especialmente os atletas, autorizem a doação de seus cérebros e informem suas famílias, assim como fizeram Maguila, Éder Jofre e Bellini. Vamos deixar um legado de respostas científicas para que as futuras

Nov 24, 2024 - 03:25
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Fim de uma luta e início de outra: doação de cérebro de Maguila ajudará no combate à "demência pugilística"

Contribuição coloca luz em estudos sobre doença neurológica que atinge atletas de esporte de contato, mas que poucos desses profissionais conhecem; morte do boxeador completa um mês O falecimento da lenda nocauteadora do boxe brasileiro, José Adilson Rodrigues dos Santos, o Maguila, completa um mês. O multicampeão peso-pesado era reconhecido por seu carisma e bondade fora dos ringues. Com seu último ato, não foi diferente: ele autorizou a doação de seu cérebro ao "Banco de Cérebros", como é conhecido o projeto do Biobanco da Faculdade de Medicina da USP, para estudos sobre envelhecimento. A iniciativa realiza pesquisas sobre a Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), uma doença ainda sem cura que afetou Maguila nos últimos 18 anos de sua vida, assim como muitos outros atletas de esportes de contato, como MMA, futebol americano e futebol. — A pesquisa em cérebros como os de Éder Jofre, Hilderaldo Luís Bellini e Maguila é muito importante para compreender os mecanismos de lesão que levam ao desenvolvimento da Encefalopatia Traumática Crônica e, inclusive, entender se há diferenças entre o cérebro de um pugilista peso-pesado, de um peso-leve ou galo e de um jogador de futebol — explica o médico e professor de neurologia da USP, Renato Anghinah, que tratou Maguila nos últimos anos de vida. Quanto mais cérebros, especialmente de ex-atletas, mais rapidamente os pesquisadores poderão identificar as consequências das lesões cerebrais causadas por traumas na cabeça. Isso permitirá verificar se é necessário adotar cuidados específicos, considerando o esporte, a categoria e o perfil dos profissionais monitorados, para prevenir o desenvolvimento da doença. Além disso, o Biobanco também estuda outras doenças neurológicas, como Alzheimer e Parkinson, buscando formas de identificar essas patologias antes que atinjam estágios avançados. Atualmente, a ETC só pode ser diagnosticada com precisão após a morte do indivíduo. Tantas pesquisas só são possíveis graças aos cerca de 5 mil cérebros já doados à universidade. O acervo do Biobanco é o segundo maior do mundo, atrás apenas da Universidade de Harvard, que iniciou seu programa em 1978. Já a USP começou em 2005, mas cresceu rapidamente por possuir um dos maiores centros de autópsias do mundo, o Serviço de Verificação de Óbitos da Capital. Esse centro viabiliza a comunicação com os familiares e a transferência do órgão dos falecidos em tempo hábil. O processo precisa ser realizado em até 14 horas após o óbito; no caso de Maguila, foi concluído em menos tempo. — A esposa do Maguila, Irani, nos avisou rapidamente e acionou a equipe para garantir que a vontade dele fosse cumprida — revela o neurologista. Maguila ao lado de um dos filhos, Junior, e da mulher Irani, em um dos últimos registros Reprodução Após a coleta, o cérebro é dividido e passa por um processo de conservação antes de ser utilizado nas pesquisas. Mesmo sendo uma doença que afeta principalmente atletas, a maioria deles desconhece os riscos da ETC e ainda menos a importância da doação de seus órgãos para estudos científicos. Para mudar esse cenário, foi criada a Fundação Legado da Concussão (CLF, na sigla em inglês), uma organização sem fins lucrativos. — Ele pode desenvolver depressão, ansiedade ou vícios, como beber diariamente, e você pode achar que ele se perdeu ou tem problemas mentais. Mas, na verdade, trata-se de uma doença biológica, e ele não tem controle sobre isso — explica Rose Gracie, conselheira nacional da fundação e responsável por conscientizar atletas sobre os riscos da ETC e a relevância da doação do cérebro para pesquisas. Rose Gracie ao lado de Chris Norwinski (esquerda), fundador da organização Concussion Legacy Foundation e o ex-diretor de comunicações, Tyler Maland Divulgação De acordo com Anghinah, estudos recentes sobre a NFL indicam que a patologia afeta 20% dos ex-atletas, embora esse número possa ser ainda maior. Em setembro, pesquisadores da Instituição de Saúde Mass General Brigham, da Escola Médica de Harvard, entrevistaram quase 2 mil ex-jogadores da NFL. O estudo revelou que 35% acreditavam ter ETC, e 25% desses relataram pensamentos suicidas frequentes — percentual significativamente maior que os 5% entre aqueles que não acreditavam ter a condição. Quarterback do Miami Dolphins, Tua Tagovailoa recebeu diversos pedidos para se aposentar da NFL após sofrer a terceira concussão registrada em sua carreira Carmen Mandato/AFP Rose, membro de uma das famílias mais conhecidas do mundo da luta, acredita que a notoriedade de Maguila pode ser fundamental para atrair mais doadores. Ela relata que já conseguiu incentivar centenas de atletas a se tornarem doadores. Atualmente, há mais de 1.200 cérebros de ex-profissionais armazenados no biobanco. — É muito importante que todas as pessoas, especialmente os atletas, autorizem a doação de seus cérebros e informem suas famílias, assim como fizeram Maguila, Éder Jofre e Bellini. Vamos deixar um legado de respostas científicas para que as futuras gerações não enfrentem os mesmos desafios que a nossa — conclui Rose.

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