Festas, blocos e rodas de conversas: Não monogamia ganha espaço no coração dos cariocas
Movimento no Rio explora novas possibilidades de relacionamento Quando a carioca Iluska Viviani ouviu no antigo rádio do pai, em 1994, a canção “A Maçã”, de Raul Seixas, um trecho em especial capturou sua atenção: “Se eu te amo e tu me amas e outro vem quando tu chamas, como poderei te condenar? Infinita tua beleza, como podes ficar presa que nem santa num altar”. Na época, ainda uma adolescente que sonhava com casamentos de conto de fadas e se encantava com histórias onde a mocinha era resgatada pelo amor verdadeiro, ela estranhou a letra que defendia a liberdade sexual feminina e criticava o amor exclusivo: “Achei um desrespeito. Era tanta falta de pudor!”. Carnaval: Bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel vira patrimônio imaterial do Estado do Rio Turismo de madrugada? No Rio, visitantes lotam cartões postais para clicar o nascer do sol Hoje, aos 44 anos, Iluska, que é publicitária, reflete sobre como sua visão mudou. Ela se casou aos 21 anos com seu melhor amigo, com quem namorou desde os 14, em uma cerimônia tradicional na Igreja Católica, com véu e grinalda. O relacionamento durou cinco anos e gerou uma filha, que agora tem 20 anos. A união terminou em 2005, quando Iluska descobriu uma traição do marido. Mas, em vez de encarar o episódio como um trauma, ela encontrou ali o ponto de partida para uma jornada de autodescoberta, ao decidir se afastar dos conceitos convencionais de relacionamento e se assumir não monogâmica, estilo de vida que tem se expandido no Rio de Janeiro, com uma crescente programação de festas, eventos e até blocos de carnaval inspirados na prática. — Não fiquei brava porque ele tinha me traído. Fiquei brava porque ele não falou comigo sobre a outra relação, porque tirou de mim o direito de fazer o mesmo — desabafa Iluska. — Na minha cabeça, eu já entendia que ninguém pertence a ninguém, mas o combinado precisa ser cumprido. Na época, a monogamia era a única coisa que eu conhecia. Se ele queria outras relações, eu também queria. Era só ele ter me dito. Já faz dez anos que Iluska vive a não monogamia. Nesse período, teve diversas relações e aprendeu o verdadeiro significado da música que um dia julgou inapropriada. — Hoje, entendo que “A Maçã” é uma metáfora para o fruto proibido e ao próprio corpo feminino. A canção coloca em contraste a liberdade sexual e as amarras da moralidade — explica a publicitária, atualmente coordenadora da Agenda Não Mono, um dos eventos não monogâmicos da cidade. Da Lapa à Barra Em edições que já ocorreram em espaços como o Cozinha da Lapa, na Rua do Rezende, a festa se posiciona na “não monogamia política, ética, consensual e dentro do vale LGBTQIA+”. E sai logo avisando: “qualquer tipo de assédio, discriminação, machismo, LGBTfobia, transfobia resulta em expulsão imediata”. — Sou ativista da causa. Criei a Agenda Não Mono para reunir outras pessoas que vivem o mesmo estilo de vida que eu e explicar o conceito para quem tem curiosidade de conhecer um pouco mais da nossa comunidade. Hoje, eu me relaciono com três afetos, a Melissa Prochnik, o Hugo Leonardo e a Deborah Navarro. Nós nos amamos e somos felizes juntos. Cada um de nós é livre para viver outras relações — detalha Iluska. A Festa Plural é mais uma na programação não monogâmica carioca que preza, como o nome sugere, pela diversidade. Ela acontece mensalmente em diferentes espaços. A primeira edição foi realizada em 2020, na Ilha da Gigoia, na Barra da Tijuca. Com o estilo pool party — festa na piscina—, normalmente atrai o público LGBTQIA+ e não monogâmicos. Já a Dengo é um evento que ocorre a cada três meses e traz a temática infantil, com pipoca, algodão-doce, balas e docinhos de graça aos convidados. Tem ainda a Crushokê, uma espécie de karaokê dos crushes, que acontece de forma semanal, na Casa de Luzia, na Lapa. E o bairro de Vila Isabel é o reduto da Se Joga Board Game, enquanto que a Afeto Fest, a Vem no amor e a Love Match são todas itinerantes, sem lugares certos para acontecer. — A maioria dos eventos não monogâmicos não tem lugar fixo. Eles acontecem em espaços pré-selecionados pelos organizadores. A regra para entrar e se divertir é entender que não é não. O respeito nas festas e eventos é primordial. Temos muito cuidado no mundo não monogâmico. Dentro dos eventos, inclusive, não é permitido nenhum ato sexual. A regra principal é ser feliz. Ser quem é de verdade, livre de qualquer preconceito — afirma Vinícius Coutinho, idealizador da Festa Plural. Segundo especialistas no tema, o termo não monogamia ganhou força a partir das transformações sociais das décadas de 1960 e 1970, impulsionadas pelos movimentos hippie e feminista. A não monogamia, explicam, permite que uma pessoa se envolva com múltiplos parceiros ou afetos simultaneamente, sem a expectativa de exclusividade. A busca por liberdade, diversidade e novas experiências é tanto romântica quanto sexual. E, assim, rompe-se com o modelo tradicional, propondo vínculos mais flexíveis. Existem desde as pessoas que mantê
Movimento no Rio explora novas possibilidades de relacionamento Quando a carioca Iluska Viviani ouviu no antigo rádio do pai, em 1994, a canção “A Maçã”, de Raul Seixas, um trecho em especial capturou sua atenção: “Se eu te amo e tu me amas e outro vem quando tu chamas, como poderei te condenar? Infinita tua beleza, como podes ficar presa que nem santa num altar”. Na época, ainda uma adolescente que sonhava com casamentos de conto de fadas e se encantava com histórias onde a mocinha era resgatada pelo amor verdadeiro, ela estranhou a letra que defendia a liberdade sexual feminina e criticava o amor exclusivo: “Achei um desrespeito. Era tanta falta de pudor!”. Carnaval: Bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel vira patrimônio imaterial do Estado do Rio Turismo de madrugada? No Rio, visitantes lotam cartões postais para clicar o nascer do sol Hoje, aos 44 anos, Iluska, que é publicitária, reflete sobre como sua visão mudou. Ela se casou aos 21 anos com seu melhor amigo, com quem namorou desde os 14, em uma cerimônia tradicional na Igreja Católica, com véu e grinalda. O relacionamento durou cinco anos e gerou uma filha, que agora tem 20 anos. A união terminou em 2005, quando Iluska descobriu uma traição do marido. Mas, em vez de encarar o episódio como um trauma, ela encontrou ali o ponto de partida para uma jornada de autodescoberta, ao decidir se afastar dos conceitos convencionais de relacionamento e se assumir não monogâmica, estilo de vida que tem se expandido no Rio de Janeiro, com uma crescente programação de festas, eventos e até blocos de carnaval inspirados na prática. — Não fiquei brava porque ele tinha me traído. Fiquei brava porque ele não falou comigo sobre a outra relação, porque tirou de mim o direito de fazer o mesmo — desabafa Iluska. — Na minha cabeça, eu já entendia que ninguém pertence a ninguém, mas o combinado precisa ser cumprido. Na época, a monogamia era a única coisa que eu conhecia. Se ele queria outras relações, eu também queria. Era só ele ter me dito. Já faz dez anos que Iluska vive a não monogamia. Nesse período, teve diversas relações e aprendeu o verdadeiro significado da música que um dia julgou inapropriada. — Hoje, entendo que “A Maçã” é uma metáfora para o fruto proibido e ao próprio corpo feminino. A canção coloca em contraste a liberdade sexual e as amarras da moralidade — explica a publicitária, atualmente coordenadora da Agenda Não Mono, um dos eventos não monogâmicos da cidade. Da Lapa à Barra Em edições que já ocorreram em espaços como o Cozinha da Lapa, na Rua do Rezende, a festa se posiciona na “não monogamia política, ética, consensual e dentro do vale LGBTQIA+”. E sai logo avisando: “qualquer tipo de assédio, discriminação, machismo, LGBTfobia, transfobia resulta em expulsão imediata”. — Sou ativista da causa. Criei a Agenda Não Mono para reunir outras pessoas que vivem o mesmo estilo de vida que eu e explicar o conceito para quem tem curiosidade de conhecer um pouco mais da nossa comunidade. Hoje, eu me relaciono com três afetos, a Melissa Prochnik, o Hugo Leonardo e a Deborah Navarro. Nós nos amamos e somos felizes juntos. Cada um de nós é livre para viver outras relações — detalha Iluska. A Festa Plural é mais uma na programação não monogâmica carioca que preza, como o nome sugere, pela diversidade. Ela acontece mensalmente em diferentes espaços. A primeira edição foi realizada em 2020, na Ilha da Gigoia, na Barra da Tijuca. Com o estilo pool party — festa na piscina—, normalmente atrai o público LGBTQIA+ e não monogâmicos. Já a Dengo é um evento que ocorre a cada três meses e traz a temática infantil, com pipoca, algodão-doce, balas e docinhos de graça aos convidados. Tem ainda a Crushokê, uma espécie de karaokê dos crushes, que acontece de forma semanal, na Casa de Luzia, na Lapa. E o bairro de Vila Isabel é o reduto da Se Joga Board Game, enquanto que a Afeto Fest, a Vem no amor e a Love Match são todas itinerantes, sem lugares certos para acontecer. — A maioria dos eventos não monogâmicos não tem lugar fixo. Eles acontecem em espaços pré-selecionados pelos organizadores. A regra para entrar e se divertir é entender que não é não. O respeito nas festas e eventos é primordial. Temos muito cuidado no mundo não monogâmico. Dentro dos eventos, inclusive, não é permitido nenhum ato sexual. A regra principal é ser feliz. Ser quem é de verdade, livre de qualquer preconceito — afirma Vinícius Coutinho, idealizador da Festa Plural. Segundo especialistas no tema, o termo não monogamia ganhou força a partir das transformações sociais das décadas de 1960 e 1970, impulsionadas pelos movimentos hippie e feminista. A não monogamia, explicam, permite que uma pessoa se envolva com múltiplos parceiros ou afetos simultaneamente, sem a expectativa de exclusividade. A busca por liberdade, diversidade e novas experiências é tanto romântica quanto sexual. E, assim, rompe-se com o modelo tradicional, propondo vínculos mais flexíveis. Existem desde as pessoas que mantêm vários relacionamentos ao mesmo tempo, enquanto outras preferem vivenciar o que chamam de não monogamia solo, onde não há um parceiro principal. — A não monogamia não é apenas um modelo alternativo de relacionamento, mas um “não modelo” que desafia as normas tradicionais de posse e exclusividade afetiva. Ela atua como um guarda-chuva, abrangendo diferentes práticas e formas de vínculo, onde o ciúme, por exemplo, é recontextualizado como um sentimento de posse, algo que a não monogamia busca desnaturalizar — afirma Rhuann Fernandes, doutorando em Sociologia e pesquisador da Uerj. Jéssica Buriche, de 33 anos, considera-se não monogâmica desde que começou a questionar o modelo tradicional de relacionamento. Fotógrafa e moradora de Campo Grande, na Zona Oeste, após 14 anos com o marido e uma filha pequena, ela encontrou na não monogamia uma forma de preservar o casamento e, ao mesmo tempo, explorar sua liberdade individual. — A liberdade de estar com outras pessoas me fez ser não monogâmica. Não tem a ver com sexo, mas com ser dona de mim — explica. Celebrações no carnaval Priscila Burin, de 40 anos, por sua vez, é coordenadora do bloco “Não Monogamia Gostoso Demais”. Ela relembra a criação e a evolução do grupo, que se tornou um marco na cena carnavalesca carioca — que nos últimos anos vem, com diferentes agremiações, alavancando ainda mais o movimento não monogâmico no Rio. Em 2022, o bloco surgiu com o objetivo de reunir amigos durante a folia, e logo se expandiu para outros eventos, como a festa do Dia dos Namorados Não Monogâmico, com ingressos vendidos e um repertório que celebrava o amor livre e o protagonismo feminino. No carnaval de 2023, o bloco fez seu primeiro desfile oficial, com a participação de 15 a 20 mil pessoas. No ano passado, o cortejo já havia crescido, com 30 mil foliões. — A não monogamia é um modelo relacional que rompe o modelo vigente, mas não é bagunça — afirma Priscila. Pessoas que vivem a não monogamia. Na foto, integrantes do bloco de carnaval Não Mono Bloco. Da esquerda para a direita, Rafa Pissurno, Marivilhosa Manduré, Lula Mattos, Jessi Couri e iuli Duarte Beatriz Orle O bloco também promove rodas de conversa para discutir os desafios da não monogamia, diz ela, sempre com o objetivo de quebrar barreiras: — O Rio é uma cidade acolhedora para os não monogâmicos. O carioca tem essa facilidade de se relacionar e de viver o novo. Já o técnico de som e músico Rafael Pissurno, de 45, é um dos fundadores de outro grupo carnavalesco que leva a temática às ruas: o “Não Mono Bloco”, iniciativa que nasceu em 2020, durante a pandemia, em uma rede de conversas por vídeo. —É uma provocação ao Monobloco, que é normativo e representativo de uma realidade da Zona Sul, branca e heteronormativa — assinala Rafael. Execuções, desaparecimentos, terreiros de Umbanda proibidos: Complexo de Israel vive sob ditadura do traficante Peixão, que diz ser evangélico O bloco, que estreou em 2023, com mais de 300 pessoas, busca criar um espaço de visibilidade e luta por direitos para as famílias não monogâmicas. O próprio músico compartilha sua jornada na não monogamia com a da parentalidade. — A vontade de ter um bebê foi um sonho de muito tempo. Já fui monogâmico, mas quando comecei a me relacionar pela não monogamia, a vontade de ser pai não sumiu — revela Rafael, que vive com uma parceira, com quem tem uma criança não binária, a Hari. — A semântica normativa não é válida para a minha relação. Termo até nos apps Em alta, o termo não monogamia já aparece em aplicativos de relacionamentos. Num deles, o usuário pode se apresentar como adepto da não monogamia ética, quando a prática é consentida e baseada na honestidade. Num outro, voltado para o público gay, o usuário pode escolher no status de relacionamento opções como “monogâmico”, “poliamorista”, “relacionamento aberto” ou apenas “com parceiro”. As relações não monogâmicas movimentam até os motéis da cidade, onde parte dos empresários atribui o sucesso de seus estabelecimentos à turma adepta das relações mais livres.
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