Crítica/Ópera: Asfixiante, 'Clitemnestra' de Marcus Siqueira abre o Festival de Música Erudita do ES
Obra revisita tragédia da Antiguidade grega para discutir as indignações seletivas, que condenam a personagem-título Uma harmonia densa e espinhosa se instala na orquestra desde os primeiros minutos de “Clitemnestra”. O rei Agamêmnon (Fellipe Oliveira, baixo-barítono) volta a Micenas vitorioso da guerra de Troia, mas não há paz em sua casa: a rainha Clitemnestra (Gabriella Pace, soprano), que jamais o perdoou pelo sacrifício de sua filha Ifigênia, ganhou fama de adúltera enquanto governava por duas décadas. O povo a detesta, e ela ainda tem contas a acertar com o rei. É com uma versão dessa antiquíssima tragédia que o Festival de Música Erudita do Espírito Santo, dirigido por Tarcísio Santório, abriu duas noites lotadas de seus oito dias de novembro, na sexta e no domingo passados. Em sua 12ª edição, o evento, que conta com a Companhia de Ópera do Espírito Santo (Coes), tem se notabilizado por encomendar títulos inéditos, ao mesmo tempo em que promove o encontro de músicos e conjuntos locais com alguns dos principais artistas brasileiros, tais como o violonista Fabio Zanon, a mezzo Ana Lúcia Benedetti e o compositor Marcus Siqueira, mineiro radicado na Itália, a quem foi encomendada esta “Clitemnestra”. Sobre o libreto de João Luiz Sampaio e Livia Sabag (que também assina a direção artística do festival), Siqueira constrói um hiperconcentrado de tensão e fúria, nascido muito mais para o teatro do que para um álbum, com a mesma coesão que já havia mostrado em “Contos de Júlia”, encomenda do ano passado. Mito célebre imortalizado no teatro por Ésquilo e já trabalhado em diversas óperas de Gluck a Richard Strauss, a “Clitemnestra” brasileira contribui com um olhar sobre as indignações seletivas, um dos temas do nosso tempo. Imprensada entre o ressentimento por uma filha assassinada e uma sociedade que não a perdoa, a personagem-título nos cativa por seus motivos até ser condenada no ato final. Neste ano, Siqueira impôs à Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo outra partitura indomável, em que a harmonia difusa, intelectual e expandida cria perigosas vertigens rítmicas, marcadas por uma vasta seção de percussão no fundo do palco, com direito a vibrafone (em gélidos diálogos com a harpa), marimba e chapa de zinco. O regente paulistano Gabriel Rhein-Schirato percorreu toda essa fatalidade com foco e eficiência, tendo ainda o desafio de ter boa parte de sua orquestra – mais precisamente, os metais – posicionados dois andares acima, uma vez que o festival ainda aguarda o fim da reforma do Teatro Carlos Gomes, no centro de Vitória. No vizinho Sesc Glória, sem fosso e com capacidade para 600 pessoas, os desafios são maiores, exigindo um grau a mais de engajamento por parte de todos os executantes. Por tudo isso, foi impressionante ver a fluidez teatral de Gabriella Pace, que fez uma Clitemnestra com autoridade e dramaticidade, servindo uma performance magistral até a monstruosa cena final, em que é assassinada pelo filho, Orestes (também interpretado por Fellipe Oliveira), que não a perdoa por trair e matar seu pai. É exatamente aí que a música se deixa desatar, desabando em cascata sobre o público. Também se destaca o equilibrio do restante do elenco, com o tenor Daniel Umbelino (Vigia), a criada Priscila Aquino (mezzo) e a soprano Débora Faustino, em fabuloso desempenho como Cassandra, a profetisa troiana capturada para o prazer de Agamêmnon. Encenado pelo carioca Menelick de Carvalho, que dirigiu o último “Elixir do Amor” no Municipal do Rio, o cenário compacto desenhado por Nicolás Boni – formado por algumas colunas arruinadas, uma banheira e leves cortinas vermelhas – conseguiu transferir o imaginário do público para a Grécia antiga facilmente, sem resvalar no kitsch. Com figurinos de Fábio Namatame e iluminação de Fábio Retti, “Clitemnestra” se revelou uma pérola de concisão dramática. Em pouco mais de uma hora, a obra instigante de Siqueira conduz todo o arco dramático de seus personagens rumo a um clímax visceral e asfixiante. Disponível no YouTube do festival, convém assistir com as luzes apagadas. Cotação: ótimo O jornalista viajou a convite da Coes e do Festival de Música Erudita do Espírito Santo.
Obra revisita tragédia da Antiguidade grega para discutir as indignações seletivas, que condenam a personagem-título Uma harmonia densa e espinhosa se instala na orquestra desde os primeiros minutos de “Clitemnestra”. O rei Agamêmnon (Fellipe Oliveira, baixo-barítono) volta a Micenas vitorioso da guerra de Troia, mas não há paz em sua casa: a rainha Clitemnestra (Gabriella Pace, soprano), que jamais o perdoou pelo sacrifício de sua filha Ifigênia, ganhou fama de adúltera enquanto governava por duas décadas. O povo a detesta, e ela ainda tem contas a acertar com o rei. É com uma versão dessa antiquíssima tragédia que o Festival de Música Erudita do Espírito Santo, dirigido por Tarcísio Santório, abriu duas noites lotadas de seus oito dias de novembro, na sexta e no domingo passados. Em sua 12ª edição, o evento, que conta com a Companhia de Ópera do Espírito Santo (Coes), tem se notabilizado por encomendar títulos inéditos, ao mesmo tempo em que promove o encontro de músicos e conjuntos locais com alguns dos principais artistas brasileiros, tais como o violonista Fabio Zanon, a mezzo Ana Lúcia Benedetti e o compositor Marcus Siqueira, mineiro radicado na Itália, a quem foi encomendada esta “Clitemnestra”. Sobre o libreto de João Luiz Sampaio e Livia Sabag (que também assina a direção artística do festival), Siqueira constrói um hiperconcentrado de tensão e fúria, nascido muito mais para o teatro do que para um álbum, com a mesma coesão que já havia mostrado em “Contos de Júlia”, encomenda do ano passado. Mito célebre imortalizado no teatro por Ésquilo e já trabalhado em diversas óperas de Gluck a Richard Strauss, a “Clitemnestra” brasileira contribui com um olhar sobre as indignações seletivas, um dos temas do nosso tempo. Imprensada entre o ressentimento por uma filha assassinada e uma sociedade que não a perdoa, a personagem-título nos cativa por seus motivos até ser condenada no ato final. Neste ano, Siqueira impôs à Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo outra partitura indomável, em que a harmonia difusa, intelectual e expandida cria perigosas vertigens rítmicas, marcadas por uma vasta seção de percussão no fundo do palco, com direito a vibrafone (em gélidos diálogos com a harpa), marimba e chapa de zinco. O regente paulistano Gabriel Rhein-Schirato percorreu toda essa fatalidade com foco e eficiência, tendo ainda o desafio de ter boa parte de sua orquestra – mais precisamente, os metais – posicionados dois andares acima, uma vez que o festival ainda aguarda o fim da reforma do Teatro Carlos Gomes, no centro de Vitória. No vizinho Sesc Glória, sem fosso e com capacidade para 600 pessoas, os desafios são maiores, exigindo um grau a mais de engajamento por parte de todos os executantes. Por tudo isso, foi impressionante ver a fluidez teatral de Gabriella Pace, que fez uma Clitemnestra com autoridade e dramaticidade, servindo uma performance magistral até a monstruosa cena final, em que é assassinada pelo filho, Orestes (também interpretado por Fellipe Oliveira), que não a perdoa por trair e matar seu pai. É exatamente aí que a música se deixa desatar, desabando em cascata sobre o público. Também se destaca o equilibrio do restante do elenco, com o tenor Daniel Umbelino (Vigia), a criada Priscila Aquino (mezzo) e a soprano Débora Faustino, em fabuloso desempenho como Cassandra, a profetisa troiana capturada para o prazer de Agamêmnon. Encenado pelo carioca Menelick de Carvalho, que dirigiu o último “Elixir do Amor” no Municipal do Rio, o cenário compacto desenhado por Nicolás Boni – formado por algumas colunas arruinadas, uma banheira e leves cortinas vermelhas – conseguiu transferir o imaginário do público para a Grécia antiga facilmente, sem resvalar no kitsch. Com figurinos de Fábio Namatame e iluminação de Fábio Retti, “Clitemnestra” se revelou uma pérola de concisão dramática. Em pouco mais de uma hora, a obra instigante de Siqueira conduz todo o arco dramático de seus personagens rumo a um clímax visceral e asfixiante. Disponível no YouTube do festival, convém assistir com as luzes apagadas. Cotação: ótimo O jornalista viajou a convite da Coes e do Festival de Música Erudita do Espírito Santo.
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