Artigo: autor homenageado da Flip 2024, João do Rio colocou em questão o mito da 'Cidade Maravilhosa'
Jornalista e escritor expôs a tensão entre o desejo elitista pela modernidade europeia e a pulsão de vida dos descendentes de escravizados e dos imigrantes pobres Foi em uma cidade do Rio de Janeiro tensionada e encruzilhada entre a tradição e a modernidade, os salões e as vielas, os palacetes e os terreiros de macumba, que João do Rio escreveu os textos que formam “A alma encantadora das ruas”. Publicado originalmente em 1908, o livro reúne conferências, reportagens e crônicas que o autor publicou na Gazeta de Notícias e na Revista Kosmos, entre 1904 e 1907. O que assistir: veja a programação completa da Flip 2024, que tem Felipe Neto, Liza Ginzburg e Édouard Louis Polêmica: biógrafo de João do Rio lamenta não ter sido convidado pela Flip e critica escolhas na programação do evento A cidade retratada por João do Rio é aquela em que a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889) são seguidas por um projeto de redefinição do espaço urbano que busca consolidar a inserção do Brasil nos quadros do capitalismo internacional. Para isso, duas tarefas imediatas se impõem: superar as características coloniais da região central, facilitando a circulação de mercadorias, e afirmar espaços simbólicos representativos de uma elite que buscava respirar ares europeus às margens do canal do Mangue. O desejo elitista e higienista da cidade europeia, entretanto, era tensionado pela multidão de descendentes de escravizados das mais diversas áfricas e imigrantes pobres que construíam suas sociabilidades, afirmavam modos de vida, elaboravam práticas culturais, festejavam, amavam, morriam, matavam, brincavam, cantavam, dançavam, trabalhavam, cultuavam os mortos e lidavam material, espiritual e afetivamente com as ruas do Rio de Janeiro. Autor homenageado da Flip: João do Rio ganha novas edições de suas obras e inspira debates sobre a realidade urbana A cidade que vai se descortinando nas páginas de João do Rio não é aquela, portanto, do encontro marcado com os prazeres, fruições e requintes da Belle Époque. A alma das ruas pulsa no cotidiano de malandros, rufiões, prostitutas, trabalhadores urbanos, cafetões, cocotes, viciados em ópio, carnavalescos, presidiários, crianças abandonadas, tatuadores, mendigos, artistas de esquinas, e diversos fantasmas coloniais de um velho Rio de Janeiro que parecia obscurecido pelas luzes do novo século. Contraditório e intenso, apaixonado e assustado pelo que registrava, atraído e repelido pelas artérias urbanas cariocas, João do Rio fez a autopsia da cidade e expôs as suas entranhas. Conforme escrevi em um estudo introdutório sobre o livro, de cada página de “A alma encantadora das ruas” parece saltar uma pergunta que, ainda hoje, incomoda o sono dos contentes e coloca em questão o mito da “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”: diante da morte que parece se impor feito destino no Rio de Janeiro, como foi possível vicejar — nas esquinas, becos e vielas — a desconcertante força da vida? Luiz Antonio Simas é professor, escritor e autor das anotações da nova edição de “A alma encantadora das ruas” (José Olympio)
Jornalista e escritor expôs a tensão entre o desejo elitista pela modernidade europeia e a pulsão de vida dos descendentes de escravizados e dos imigrantes pobres Foi em uma cidade do Rio de Janeiro tensionada e encruzilhada entre a tradição e a modernidade, os salões e as vielas, os palacetes e os terreiros de macumba, que João do Rio escreveu os textos que formam “A alma encantadora das ruas”. Publicado originalmente em 1908, o livro reúne conferências, reportagens e crônicas que o autor publicou na Gazeta de Notícias e na Revista Kosmos, entre 1904 e 1907. O que assistir: veja a programação completa da Flip 2024, que tem Felipe Neto, Liza Ginzburg e Édouard Louis Polêmica: biógrafo de João do Rio lamenta não ter sido convidado pela Flip e critica escolhas na programação do evento A cidade retratada por João do Rio é aquela em que a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889) são seguidas por um projeto de redefinição do espaço urbano que busca consolidar a inserção do Brasil nos quadros do capitalismo internacional. Para isso, duas tarefas imediatas se impõem: superar as características coloniais da região central, facilitando a circulação de mercadorias, e afirmar espaços simbólicos representativos de uma elite que buscava respirar ares europeus às margens do canal do Mangue. O desejo elitista e higienista da cidade europeia, entretanto, era tensionado pela multidão de descendentes de escravizados das mais diversas áfricas e imigrantes pobres que construíam suas sociabilidades, afirmavam modos de vida, elaboravam práticas culturais, festejavam, amavam, morriam, matavam, brincavam, cantavam, dançavam, trabalhavam, cultuavam os mortos e lidavam material, espiritual e afetivamente com as ruas do Rio de Janeiro. Autor homenageado da Flip: João do Rio ganha novas edições de suas obras e inspira debates sobre a realidade urbana A cidade que vai se descortinando nas páginas de João do Rio não é aquela, portanto, do encontro marcado com os prazeres, fruições e requintes da Belle Époque. A alma das ruas pulsa no cotidiano de malandros, rufiões, prostitutas, trabalhadores urbanos, cafetões, cocotes, viciados em ópio, carnavalescos, presidiários, crianças abandonadas, tatuadores, mendigos, artistas de esquinas, e diversos fantasmas coloniais de um velho Rio de Janeiro que parecia obscurecido pelas luzes do novo século. Contraditório e intenso, apaixonado e assustado pelo que registrava, atraído e repelido pelas artérias urbanas cariocas, João do Rio fez a autopsia da cidade e expôs as suas entranhas. Conforme escrevi em um estudo introdutório sobre o livro, de cada página de “A alma encantadora das ruas” parece saltar uma pergunta que, ainda hoje, incomoda o sono dos contentes e coloca em questão o mito da “cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”: diante da morte que parece se impor feito destino no Rio de Janeiro, como foi possível vicejar — nas esquinas, becos e vielas — a desconcertante força da vida? Luiz Antonio Simas é professor, escritor e autor das anotações da nova edição de “A alma encantadora das ruas” (José Olympio)
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