Tesouro 'desconhecido' e fugaz, tipografia urbana é tema de livro e exposições pelo mundo

Projetos documentam e preservam letreiros ameaçados, que identificam fachadas públicas e comerciais Uma presença ao mesmo tempo “desconhecida e constante”. Assim o designer Victor Burton define a tipografia urbana do Rio em seu recém-lançado “O texto da rua” (Sextante). Reunindo mais de cem imagens de letreiros estampados em prédios públicos, residenciais e comerciais, o livro exalta um patrimônio essencial para a identidade visual das nossas ruas, mas que só recebe a devida atenção de alguns poucos apaixonados. Leia também: Tradicional Spaghettilândia, que fechará as portas no Rio, foi palco da mais longa polêmica literária do país Sébastien Sisson: Exposição resgata primeira história em quadrinhos do Brasil e comemora 200 anos de seu autor Quem vive a cidade intensamente já deve ter cruzado, talvez de forma apressada, com algumas das tipografias destacadas no livro, que identificam associações como a ABI, indústrias como a Red Indian SA, edifícios icônicos como o Mayapan e estabelecimentos comerciais como o Bar Paladino e a Casa Cavé. Nem todo pedestre, porém, percebe as “falas invisíveis” que esses letreiros guardam. — Muitas pessoas veem a tipografia urbana como uma mera sinalização — diz Burton, que é doutor em História da Arte e Estética pela USP. — Mas ela é muito mais do que isso. Ela carrega uma mensagem, com significados que vão muito além do que aparece escrito em uma fachada. Bar Paladino, no Centro do Rio Divulgação/ João Victor Burton “O texto da rua” serve como um alerta para a fugacidade dessas relíquias, que não são disputadas por museus e não raro acabam descartadas quando o estabelecimento comercial fecha as portas. Como esse processo é ainda mais forte no subúrbio, o autor fez questão de incluir no livro letreiros resilientes da região, como o do Cinema Vaz Lobo, na Zona Norte do Rio. ‘Fachadas estão anônimas’ O surgimento de novos prédios e letreiros é um processo natural — e inevitável — em qualquer cidade. De acordo com Burton, contudo, as novas soluções gráficas para as fachadas brasileiras carecem do apuro técnico e estético de antes. As razões seriam econômicas e culturais. — As fachadas estão cada vez mais anônimas, porque é mais fácil assim — lamenta Burton. — Hoje tudo é descartável e efêmero. Você vai numa fábrica de letras e elas já estão prontas no computador. E, na maior parte das vezes, não têm nenhuma relação com a arquitetura dos prédios. Infelizmente, o ensino do design no Brasil descuidou da tipografia, considerada acessória, e não parte da arquitetura. Cine Vaz Lobo Divulgação/ João Victor Burton Tesouros de Copacabana Não é apenas a tipografia “de alta qualidade”, como define Burton, que some das ruas conforme comércios familiares são substituídos por franquias com identidade visual genérica. O bairro carioca de Copacabana exemplifica bem essa transformação. Enquanto os letreiros gravados nos históricos edifícios residenciais art déco da região seguem firmes (como o celebrado Itahy, que aparece no livro de Burton), as placas comerciais de outrora têm menos sorte. O declínio fica evidente ao se folhear as páginas de “Letreiros afetivos”, livro de 2016 organizado por Mari Stockler e Marcus Wagner, que reúne imagens de placas de estabelecimentos do Rio. Menos de uma década depois, a maioria dos letreiros de Copacabana que ilustram a publicação se foram. Os que resistem, como a quase centenária Cinta Moderna, ficaram deslocados n um bairro transformado. O declínio fica evidente ao se folhear as páginas de “Letreiros afetivos”, livro de 2016 organizado por Mari Stockler e Marcus Wagner, que reúne imagens de placas de estabelecimentos do Rio. Menos de uma década depois, a maioria dos letreiros de Copacabana que ilustram a publicação se foram. Os que resistem, como a quase centenária Cinta Moderna, ficaram deslocados n um bairro transformado. Em agosto, o anúncio de que o icônico letreiro da Flora Santa Clara sairia de cena partiu o coração dos amantes da arte gráfica local. Rica em cores e detalhes, a placa comercial evaporou-se com a demolição do sobrado onde a floricultura funcionou por 80 anos. — Um letreiro não é uma simples peça decorativa, ele faz parte da História e da memória — diz Marcus Wagner. — Alguns poucos letreiros podem apontar os caminhos históricos que um bairro tomou. Na falta de um acervo para abrigá-las, o destino da memória visual das ruas acaba sendo o descarte. Wagner chegou a catar da lixeira alguns pedaços do letreiro da Charutaria Lolló (também em Copacabana), substituído em 2019 por um impresso com fonte digital. — Logo que o livro saiu, passei por uma loja de brinquedos dentro da Galeria Menescal (de Copacabana), e descobri que o seu tradicional letreiro havia acabado de ser jogado fora — lembra o autor. — A atendente contou que ela mesma destruiu a peça, porque não tinha noção do valor histórico. É preciso mais conscientização. O Brasil não é o único lugar em que o patrimônio gráfico urbano sofre com as modernizações. O temor por sua ext

Nov 24, 2024 - 04:15
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Tesouro 'desconhecido' e fugaz, tipografia urbana é tema de livro e exposições pelo mundo

Projetos documentam e preservam letreiros ameaçados, que identificam fachadas públicas e comerciais Uma presença ao mesmo tempo “desconhecida e constante”. Assim o designer Victor Burton define a tipografia urbana do Rio em seu recém-lançado “O texto da rua” (Sextante). Reunindo mais de cem imagens de letreiros estampados em prédios públicos, residenciais e comerciais, o livro exalta um patrimônio essencial para a identidade visual das nossas ruas, mas que só recebe a devida atenção de alguns poucos apaixonados. Leia também: Tradicional Spaghettilândia, que fechará as portas no Rio, foi palco da mais longa polêmica literária do país Sébastien Sisson: Exposição resgata primeira história em quadrinhos do Brasil e comemora 200 anos de seu autor Quem vive a cidade intensamente já deve ter cruzado, talvez de forma apressada, com algumas das tipografias destacadas no livro, que identificam associações como a ABI, indústrias como a Red Indian SA, edifícios icônicos como o Mayapan e estabelecimentos comerciais como o Bar Paladino e a Casa Cavé. Nem todo pedestre, porém, percebe as “falas invisíveis” que esses letreiros guardam. — Muitas pessoas veem a tipografia urbana como uma mera sinalização — diz Burton, que é doutor em História da Arte e Estética pela USP. — Mas ela é muito mais do que isso. Ela carrega uma mensagem, com significados que vão muito além do que aparece escrito em uma fachada. Bar Paladino, no Centro do Rio Divulgação/ João Victor Burton “O texto da rua” serve como um alerta para a fugacidade dessas relíquias, que não são disputadas por museus e não raro acabam descartadas quando o estabelecimento comercial fecha as portas. Como esse processo é ainda mais forte no subúrbio, o autor fez questão de incluir no livro letreiros resilientes da região, como o do Cinema Vaz Lobo, na Zona Norte do Rio. ‘Fachadas estão anônimas’ O surgimento de novos prédios e letreiros é um processo natural — e inevitável — em qualquer cidade. De acordo com Burton, contudo, as novas soluções gráficas para as fachadas brasileiras carecem do apuro técnico e estético de antes. As razões seriam econômicas e culturais. — As fachadas estão cada vez mais anônimas, porque é mais fácil assim — lamenta Burton. — Hoje tudo é descartável e efêmero. Você vai numa fábrica de letras e elas já estão prontas no computador. E, na maior parte das vezes, não têm nenhuma relação com a arquitetura dos prédios. Infelizmente, o ensino do design no Brasil descuidou da tipografia, considerada acessória, e não parte da arquitetura. Cine Vaz Lobo Divulgação/ João Victor Burton Tesouros de Copacabana Não é apenas a tipografia “de alta qualidade”, como define Burton, que some das ruas conforme comércios familiares são substituídos por franquias com identidade visual genérica. O bairro carioca de Copacabana exemplifica bem essa transformação. Enquanto os letreiros gravados nos históricos edifícios residenciais art déco da região seguem firmes (como o celebrado Itahy, que aparece no livro de Burton), as placas comerciais de outrora têm menos sorte. O declínio fica evidente ao se folhear as páginas de “Letreiros afetivos”, livro de 2016 organizado por Mari Stockler e Marcus Wagner, que reúne imagens de placas de estabelecimentos do Rio. Menos de uma década depois, a maioria dos letreiros de Copacabana que ilustram a publicação se foram. Os que resistem, como a quase centenária Cinta Moderna, ficaram deslocados n um bairro transformado. O declínio fica evidente ao se folhear as páginas de “Letreiros afetivos”, livro de 2016 organizado por Mari Stockler e Marcus Wagner, que reúne imagens de placas de estabelecimentos do Rio. Menos de uma década depois, a maioria dos letreiros de Copacabana que ilustram a publicação se foram. Os que resistem, como a quase centenária Cinta Moderna, ficaram deslocados n um bairro transformado. Em agosto, o anúncio de que o icônico letreiro da Flora Santa Clara sairia de cena partiu o coração dos amantes da arte gráfica local. Rica em cores e detalhes, a placa comercial evaporou-se com a demolição do sobrado onde a floricultura funcionou por 80 anos. — Um letreiro não é uma simples peça decorativa, ele faz parte da História e da memória — diz Marcus Wagner. — Alguns poucos letreiros podem apontar os caminhos históricos que um bairro tomou. Na falta de um acervo para abrigá-las, o destino da memória visual das ruas acaba sendo o descarte. Wagner chegou a catar da lixeira alguns pedaços do letreiro da Charutaria Lolló (também em Copacabana), substituído em 2019 por um impresso com fonte digital. — Logo que o livro saiu, passei por uma loja de brinquedos dentro da Galeria Menescal (de Copacabana), e descobri que o seu tradicional letreiro havia acabado de ser jogado fora — lembra o autor. — A atendente contou que ela mesma destruiu a peça, porque não tinha noção do valor histórico. É preciso mais conscientização. O Brasil não é o único lugar em que o patrimônio gráfico urbano sofre com as modernizações. O temor por sua extinção vem provocando um esforço de documentação mundo afora, com efeito direto nas redes sociais. Nos últimos anos, multiplicaram-se perfis no Instagram dedicados ao registro de fachadas nos quatro cantos do planeta. No Brasil, destacam-se o @memoriastipograficas, do editor Bruno Porto, centrado no Rio; e o @letreirosfachadas, do publicitário Leo Prestes, mais focado no Rio Grande do Sul. Exemplos europeus Já a Espanha desponta como referência na área da preservação. O tipógrafo Álvaro Franca, que divulga a rica tipografia do país em seu perfil no Instagram (@alvaroefe), observa de perto as iniciativas de grupos locais para resgatar e restaurar letreiros ameaçados. Carioca radicado em Barcelona, ele cita ações como a do coletivo madrilenho Paco Graco (@pacograco). Para evitar o descarte do tradicional letreiro de uma barbearia, o grupo adaptou-o para a farmácia que se instalou em seu lugar. Incluiu o nome do novo estabelecimento, mantendo a composição original. — Aqui, os amantes da tipografia dizem que perder um letreiro antigo é como perder um vizinho — diz Franca. — Vale lembrar que não precisa ser uma peça de design premiada para ser valorizado. Basta fazer parte da nossa memória afetiva. Já imaginou andar por Copacabana e não ver o sinal do cinema Roxy? Ele faz parte da paisagem do bairro tanto quanto a praia. Franca, que trabalha criando fontes para empresas, estuda tipografias antigas em busca de inspiração para novas estéticas. — Dá para perceber que, entre as novas gerações, está voltando o gosto por uma linguagem gráfica mais autêntica — avalia. — Muitos jovens profissionais passaram a se interessar pelo sign painting (técnica artesanal de pintura de letreiros à mão), por exemplo. No Brasil, temos o trabalho de Filipe Grimaldi. Exposição com letreiros resgatados pela Red Ibérica en Defensa del Patrimonio Gráfico, da Espanha Divulgação Em 2020, as dezenas de iniciativas para proteger a memória visual que se espalhavam pela Espanha acabaram se unindo em uma só rede: a Red Ibérica en Defensa del Patrimonio Gráfico. — Alguns dos nossos projetos se concentram mais na divulgação, outros na pesquisa e outros nos resgates — diz Fabiola Muñoz. Após anos se esforçando para sensibilizar o público pela causa, o grupo começou a ficar mais conhecido entre os comerciantes. Donos dos estabelecimentos com os dias contados passaram a buscar de forma espontânea os representantes do projeto para doar um pedaço de sua história. — Quando comecei a documentar letreiros, os comerciantes me olhavam esperando que eu fosse vender algo — recorda Frederico Barrera, do Santatipo: Patrimônio Gráfico Cantabria (@santatipo). — Ao explicar o projeto, suas expressões mudavam e abriam as portas de seus negócios. Hoje, já estamos alcançando a sociedade e as pessoas passaram a ter mais consciência de que o patrimônio gráfico é tão nosso quanto um edifício histórico. Para além da rua Com o tempo, os projetos foram transcendendo o ambiente digital para se transformar em livros e exposições. É o caso do Aphantastic Letters, cujo acervo virou livro e foi exibido em outubro na mostra “No hay futuro si se pierde el encanto”, em uma galeria de Sevilha. Mais propostas como essas podem surgir com incentivos públicos e privados, acredita Fabiola Muñoz. — A nível público, há muitas formas de contribuir: desde assumir o armazenamento e catalogação dos letreiros até colaborar na restauração das peças ou na gestão dos resgates, para os quais muitas vezes não temos infraestrutura, meios ou pessoal suficiente — diz ela Fabiola. A espanhola destaca instituições como o Musée du Carnavalet e o Musée Le Secq des Tournelles, ambos franceses, que incorporaram letreiros em seus acervos e deram um novo significado a relíquias urbanas. — Embora gostemos de dizer que o habitat natural de um letreiro é a rua, há, sim, espaço para eles nos museus — acrescenta Muñoz. Acervo da Letreiro Galeria na exposição "Brilha Rio" Divulgação/ Rita Múrias Com seis exposições de seu acervo no currículo, o grupo Letreiro Galeria, de Lisboa, sobrevive sem patrocínios desde 2014. A associação sem fins lucrativos criada pelos designers Rita Múrias e Paulo Barata Corrêa é descrita pelos amantes do patrimônio gráfico como uma iniciativa “quixotesca”. O casal já armazenou mais de 400 peças em um depósito próprio. Cerca de 90% da coleção é composta por néons, especialmente ameaçados por conta de uma taxa suplementar cobrada aos comerciantes portugueses que penduram esse tipo de luminoso em sua fachada. ‘História emocional’ Rita e Paulo criam uma curadoria diferente para cada exposição, usando o acervo para retratar a história da cidade por um novo ângulo. O acervo mostra a evolução do design, da tecnologia e até da política (por exemplo, termos estrangeiros nas fachadas eram proibidos na ditadura de Salazar). Algumas placas antigas também ajudam a relembrar serviços esquecidos, como o conserto de canetas. — Os visitantes costumam ter flashbacks, trazendo à tona o que chamamos de “História emocional” — diz Corrêa. — Elas começam a falar sobre a vida delas. Lembro de uma mulher que começou a chorar depois de ver o letreiro de uma pastelaria de sua infância, onde costumava lanchar com a sua avó, recém-falecida. E também de um casal que reconheceu o lugar onde começaram a namorar, décadas atrás.

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