Novo romance de Reginaldo Pujol Filho faz alegoria sobre as narrativas que giram em torno do mercado das artes plásticas
Ao contar a trajetória de um artista plástico que circulou entre NY e Rio nos anos 1970-80, autor critica a esterilidade e os jargões das galerias Imagine-se numa galeria de arte. Dessas cujas paredes são neutras, perfeitas para não chamarem mais atenção do que a exposição que recebem. Antes de você contemplar, com a mão no queixo, as peças artísticas expostas, existe uma introdução para explicar o que a seguir será visto. Tudo normal, até que você dá os primeiros passos, para enfim ver quadros ou esculturas ou o que for, e nas paredes não há nada, a não ser os textos que descrevem e contextualizam as obras ausentes. Crítica: 'Krakatoa', de Veronica Stigger, associa fantasmas, diário de viagem e erupções em narrativas sobre prazer Resenha: Em livro, crítico cultural sugere que história da música preta dos EUA seja contada sob nova ótica No íntimo, você se perguntaria se é para ser assim mesmo, se tem algo errado. A situação seria estranha. Mas, afinal, você daria de ombros, pois estranheza é um dos teores prediletos da arte. Quem abrir “Nosso corpo estranho”, do gaúcho Reginaldo Pujol Filho, encontrará exatamente isto: uma exposição sem obras de arte. É um romance composto, todo ele, de textos de galeria. E nada mais. Não existe narrador, alguém que conta e comenta esses textos ou inventa acontecimentos para a interação de personagens. Do início ao fim, todo e qualquer texto impresso nas páginas são reproduções de textos de galeria, fictícios como a exposição a que se referem, aliás homônima do livro. Capa do livro ''Nosso corpo estranho', de Reginal Pujol Filho Divulgação É uma individual, póstuma, do artista João Pedro Bennetti Bier, o protagonista. Nascido em Porto Alegre em 1960, muda-se ainda jovem para Nova York, separando-se da mãe, viúva, e do padrasto, diplomata, que foram viver em Paris. Isto e o fato de o falecido pai assombrá-lo fazem com que ele seja adjetivado como hamletiano, o que denota tragédia. “É que João Pedro parece ter trabalhado a vida inteira para não ser: da família, do país, da política, de correntes artísticas, do mercado. Ser e não ser”, excluindo assim a mais famosa questão shakespeariana e marcando a ambivalência do personagem. ‘Segunda classe’ Nos EUA, torna-se JayPee na adolescência, para se integrar melhor à cultura americana, e depois, formando-se artista e mais consciente de seu lugar, assume o brasileiríssimo João Pedro, sem os sobrenomes. Frequentando a cena novaiorquina, onde figuram nomes como Basquiat e Keith Haring, incomoda-se com Andy Warhol, para quem conseguiu trabalhar por intermédio do padrasto. Segundo citação do diário de João Pedro, o grande ícone da arte americana daquele período se dirige a ele como “Brazilian guy”, “tratando[-o] como imigrante de segunda classe”. Galerias Relacionadas Em 1981, volta ao Brasil, ao Rio de Janeiro, para lidar com a herança da avó. Elabora uma obra estranha à sua própria produção, intitulada “Carmen Miranda”. Como as obras em si não aparecem no livro, fica a cargo dos leitores imaginá-las a partir da descrição, ou ao menos depreender dos textos seus possíveis significados. “Carmen Miranda” indica o quanto um artista acostumado com os mimos da vida privilegiada, quando confrontado por uma realidade dura que o atinge, acaba expressando algo novo. “Em meio à ebulição cívica e bombas no Riocentro, o artista via outra cidade: festas e vernissages”, diz o texto, e revela a alienação do cidadão que resultará na marginalização do artista. “Mas também viu o preconceito em um violento achaque policial por conta de seu visual e de seu comportamento”, segue e mostra que o alienado também está sujeito àquilo que julgava não ser problema seu. A descrição de “Carmen Miranda” encerra-se com a pergunta “Há um modo de ser nacional?” e, assim como o livro incumbe aos leitores a imaginação das obras, deixa a pergunta sem resposta. Correndo riscos Dentro mesmo do mundo das artes, debate-se sobre a esterilidade dos textos de galeria repletos de jargões e lugares-comuns. Pujol Filho arrisca ao valer-se unicamente desse gênero textual, ainda mais porque o parodia, incorporando palavras tão recorrentes que já se esvaziaram de sentido, como “afetos”, “atravessamentos”, “potências”, “devir”, entre outras, todas utilizadas por ele, no entanto, com o fino da ironia. O autor troça desse mundo e torna a leitura deveras divertida, além de estimular a pensar sobre a relação entre vida e obra de artistas, por exemplo. É golpe baixo, porém, troçar do mundo das artes, alvo fácil por estar imbuído das pompas mercadológicas e das desproporções que estas mesmas pompas provocam. * Luis Campagnoli é mestre em Ciência da Literatura pela UFRJ
Ao contar a trajetória de um artista plástico que circulou entre NY e Rio nos anos 1970-80, autor critica a esterilidade e os jargões das galerias Imagine-se numa galeria de arte. Dessas cujas paredes são neutras, perfeitas para não chamarem mais atenção do que a exposição que recebem. Antes de você contemplar, com a mão no queixo, as peças artísticas expostas, existe uma introdução para explicar o que a seguir será visto. Tudo normal, até que você dá os primeiros passos, para enfim ver quadros ou esculturas ou o que for, e nas paredes não há nada, a não ser os textos que descrevem e contextualizam as obras ausentes. Crítica: 'Krakatoa', de Veronica Stigger, associa fantasmas, diário de viagem e erupções em narrativas sobre prazer Resenha: Em livro, crítico cultural sugere que história da música preta dos EUA seja contada sob nova ótica No íntimo, você se perguntaria se é para ser assim mesmo, se tem algo errado. A situação seria estranha. Mas, afinal, você daria de ombros, pois estranheza é um dos teores prediletos da arte. Quem abrir “Nosso corpo estranho”, do gaúcho Reginaldo Pujol Filho, encontrará exatamente isto: uma exposição sem obras de arte. É um romance composto, todo ele, de textos de galeria. E nada mais. Não existe narrador, alguém que conta e comenta esses textos ou inventa acontecimentos para a interação de personagens. Do início ao fim, todo e qualquer texto impresso nas páginas são reproduções de textos de galeria, fictícios como a exposição a que se referem, aliás homônima do livro. Capa do livro ''Nosso corpo estranho', de Reginal Pujol Filho Divulgação É uma individual, póstuma, do artista João Pedro Bennetti Bier, o protagonista. Nascido em Porto Alegre em 1960, muda-se ainda jovem para Nova York, separando-se da mãe, viúva, e do padrasto, diplomata, que foram viver em Paris. Isto e o fato de o falecido pai assombrá-lo fazem com que ele seja adjetivado como hamletiano, o que denota tragédia. “É que João Pedro parece ter trabalhado a vida inteira para não ser: da família, do país, da política, de correntes artísticas, do mercado. Ser e não ser”, excluindo assim a mais famosa questão shakespeariana e marcando a ambivalência do personagem. ‘Segunda classe’ Nos EUA, torna-se JayPee na adolescência, para se integrar melhor à cultura americana, e depois, formando-se artista e mais consciente de seu lugar, assume o brasileiríssimo João Pedro, sem os sobrenomes. Frequentando a cena novaiorquina, onde figuram nomes como Basquiat e Keith Haring, incomoda-se com Andy Warhol, para quem conseguiu trabalhar por intermédio do padrasto. Segundo citação do diário de João Pedro, o grande ícone da arte americana daquele período se dirige a ele como “Brazilian guy”, “tratando[-o] como imigrante de segunda classe”. Galerias Relacionadas Em 1981, volta ao Brasil, ao Rio de Janeiro, para lidar com a herança da avó. Elabora uma obra estranha à sua própria produção, intitulada “Carmen Miranda”. Como as obras em si não aparecem no livro, fica a cargo dos leitores imaginá-las a partir da descrição, ou ao menos depreender dos textos seus possíveis significados. “Carmen Miranda” indica o quanto um artista acostumado com os mimos da vida privilegiada, quando confrontado por uma realidade dura que o atinge, acaba expressando algo novo. “Em meio à ebulição cívica e bombas no Riocentro, o artista via outra cidade: festas e vernissages”, diz o texto, e revela a alienação do cidadão que resultará na marginalização do artista. “Mas também viu o preconceito em um violento achaque policial por conta de seu visual e de seu comportamento”, segue e mostra que o alienado também está sujeito àquilo que julgava não ser problema seu. A descrição de “Carmen Miranda” encerra-se com a pergunta “Há um modo de ser nacional?” e, assim como o livro incumbe aos leitores a imaginação das obras, deixa a pergunta sem resposta. Correndo riscos Dentro mesmo do mundo das artes, debate-se sobre a esterilidade dos textos de galeria repletos de jargões e lugares-comuns. Pujol Filho arrisca ao valer-se unicamente desse gênero textual, ainda mais porque o parodia, incorporando palavras tão recorrentes que já se esvaziaram de sentido, como “afetos”, “atravessamentos”, “potências”, “devir”, entre outras, todas utilizadas por ele, no entanto, com o fino da ironia. O autor troça desse mundo e torna a leitura deveras divertida, além de estimular a pensar sobre a relação entre vida e obra de artistas, por exemplo. É golpe baixo, porém, troçar do mundo das artes, alvo fácil por estar imbuído das pompas mercadológicas e das desproporções que estas mesmas pompas provocam. * Luis Campagnoli é mestre em Ciência da Literatura pela UFRJ
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