Mia Couto: 'Não posso ser censurado pelo medo'
Escritor moçambicano Mia Couto lança romance no Brasil, fala da atual crise política em seu país, que opõe irregularidades nas eleições e reação violenta, e relata ‘ameaças veladas’ que tem sofrido Esta semana, o escritor moçambicano Mia Couto sentou-se para conversar com O GLOBO, em São Paulo, onde lançava “A cegueira do rio”, seu novo romance, e contou estar “profundamente angustiado”. — Metade de mim está lá, em Moçambique, onde estão meus filhos, meus netos, minha vida. O que está a acontecer é um apelo a um golpe de Estado, a um regime autoritário que não respeite a cidadania — disse o autor, de 69 anos. — A intolerância e a polarização nunca estiveram tão presentes. Temos a sensação de que tudo está a desmoronar. Carlos Vergara: Celebrando 60 anos de carreira, artista cria esculturas para o Pão de Açúcar e prepara mostras para 2025 'O ponto principal é que são humanos': Martin Scorsese explica seu interesse em nova série sobre santos católicos Mia falava da aguda crise política na qual o país submergiu há um mês. Após as eleições de 9 de outubro, marcadas por fortes indícios de irregularidades, o candidato da oposição à Presidência, Venâncio Mondlane, proclamou-se o vencedor, mas as autoridades deram a vitória a Daniel Chapo, da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que ocupa o governo desde a Independência, em 1975. Mondlane, pastor evangélico e admirador de Jair Bolsonaro, convocou seus apoiadores às ruas, e a situação se acirrou, trazendo enfrentamentos, violência policial, feridos e mortos. — As eleições expuseram a frustração acumulada da juventude urbana, e esse sentimento está sendo aproveitado por quem se intitula um messias — comenta o autor. — Se eu tivesse 20 anos hoje, também estaria revoltadíssimo e marchando, mas não sob as ordens de um profeta. José Eduardo Agualusa: 'Um escritor que não é inteiramente livre já não é mais um escritor' Mia acredita que houve fraude nas eleições e que ninguém pode se declarar vencedor sem que haja um processo limpo de contagem de votos, legitimado pela sociedade civil. Ele conta que recebe “ameaças veladas” e que foi pressionado a apoiar Mondlane (algo que ele diz que não fará): — Minha família me pediu para não falar disso, mas não posso ser censurado pelo medo. Antes da entrevista, Mia viu um vídeo que repetia ameaças (mais explícitas) a José Eduardo Agualusa, escritor angolano que vive em Moçambique. Os dois são amigos e editores informais um do outro — no dia 21, inclusive, estreia nos cinemas a animação “Nayola, em busca de minha ancestralidade“, inspirada na peça “A caixa preta”, escrita por ambos. Colunista do GLOBO, Agualusa começou a sofrer intimidações após publicar a crônica “Um bolsonarista africano”, sobre Mondlane, sobre as constantes suspeitas de fraude em sucessivas eleições moçambicanas e a atual crise. Também no Brasil para o lançamento de seu novo romance, “Mestre dos batuques” (Tusquets), Agualusa confirmou ao repórter as ameaças e disse que, por segurança, tirou a filha de Moçambique. Autor do Hino Ainda um jovem poeta, Mia engrossou as fileiras da Frelimo na luta pela Independência. Diante da crise em Moçambique, afirma que aquele “movimento de libertação e emancipação dos mais pobres foi capturado por uma elite predadora, responsável pela situação atual”. — Sou um dos autores do Hino Nacional, escrito por um coletivo em discussão com o parlamento. Os reacionários eram contra o verso “o sol vermelho para sempre brilhará” e mudamos para “o sol de junho”. Mas quem rejeitava o verso “nenhum tirano nos irá escravizar” eram os deputados da Frelimo, pois diziam que jamais seriam tiranos. Ora, eles já pressupunham que seriam eternamente o poder — recorda Mia. — Agora, temos que nos libertar daqueles que comandaram a luta pela libertação nacional. A tumultuada história do país africano é revisitada continuamente pela literatura de Mia, que venceu o Prêmio Camões em 2013. “Terra sonâmbula”, seu romance mais celebrado, de 1992, é ambientado durante a guerra civil que se estendeu de 1976 a 1994. Entre 2015 e 2017, ele publicou a trilogia “As areias do imperador”, que recua ainda mais no tempo e narra a queda de Ngungunyane, o último monarca do Estado de Gaza (no sul de Moçambique, sem relação com a Faixa de Gaza), derrotado pelos portugueses em 1895. O estopim de “A cegueira do rio” é o episódio que marcou a chegada da Primeira Guerra Mundial em Moçambique: o assassinato de 11 soldados africanos e um sargento português por militares alemães em agosto de 1914. Mia explica que o retorno literário ao passado é “um convite à lembrança, não ao julgamento e à vingança”. Em Moçambique, diz ele, persiste a tentação de esquecer eventos traumáticos. — Quando quis escrever sobre a escravatura, alguém me disse: “não desperte esses fantasmas” — conta o autor. — Não existe memória das cumplicidades internas que permitiram a escravatura, e quem lutou ao lado dos portugueses, contra a Independência, é como se não tivesse existido. ‘A beleza do pro
Escritor moçambicano Mia Couto lança romance no Brasil, fala da atual crise política em seu país, que opõe irregularidades nas eleições e reação violenta, e relata ‘ameaças veladas’ que tem sofrido Esta semana, o escritor moçambicano Mia Couto sentou-se para conversar com O GLOBO, em São Paulo, onde lançava “A cegueira do rio”, seu novo romance, e contou estar “profundamente angustiado”. — Metade de mim está lá, em Moçambique, onde estão meus filhos, meus netos, minha vida. O que está a acontecer é um apelo a um golpe de Estado, a um regime autoritário que não respeite a cidadania — disse o autor, de 69 anos. — A intolerância e a polarização nunca estiveram tão presentes. Temos a sensação de que tudo está a desmoronar. Carlos Vergara: Celebrando 60 anos de carreira, artista cria esculturas para o Pão de Açúcar e prepara mostras para 2025 'O ponto principal é que são humanos': Martin Scorsese explica seu interesse em nova série sobre santos católicos Mia falava da aguda crise política na qual o país submergiu há um mês. Após as eleições de 9 de outubro, marcadas por fortes indícios de irregularidades, o candidato da oposição à Presidência, Venâncio Mondlane, proclamou-se o vencedor, mas as autoridades deram a vitória a Daniel Chapo, da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), que ocupa o governo desde a Independência, em 1975. Mondlane, pastor evangélico e admirador de Jair Bolsonaro, convocou seus apoiadores às ruas, e a situação se acirrou, trazendo enfrentamentos, violência policial, feridos e mortos. — As eleições expuseram a frustração acumulada da juventude urbana, e esse sentimento está sendo aproveitado por quem se intitula um messias — comenta o autor. — Se eu tivesse 20 anos hoje, também estaria revoltadíssimo e marchando, mas não sob as ordens de um profeta. José Eduardo Agualusa: 'Um escritor que não é inteiramente livre já não é mais um escritor' Mia acredita que houve fraude nas eleições e que ninguém pode se declarar vencedor sem que haja um processo limpo de contagem de votos, legitimado pela sociedade civil. Ele conta que recebe “ameaças veladas” e que foi pressionado a apoiar Mondlane (algo que ele diz que não fará): — Minha família me pediu para não falar disso, mas não posso ser censurado pelo medo. Antes da entrevista, Mia viu um vídeo que repetia ameaças (mais explícitas) a José Eduardo Agualusa, escritor angolano que vive em Moçambique. Os dois são amigos e editores informais um do outro — no dia 21, inclusive, estreia nos cinemas a animação “Nayola, em busca de minha ancestralidade“, inspirada na peça “A caixa preta”, escrita por ambos. Colunista do GLOBO, Agualusa começou a sofrer intimidações após publicar a crônica “Um bolsonarista africano”, sobre Mondlane, sobre as constantes suspeitas de fraude em sucessivas eleições moçambicanas e a atual crise. Também no Brasil para o lançamento de seu novo romance, “Mestre dos batuques” (Tusquets), Agualusa confirmou ao repórter as ameaças e disse que, por segurança, tirou a filha de Moçambique. Autor do Hino Ainda um jovem poeta, Mia engrossou as fileiras da Frelimo na luta pela Independência. Diante da crise em Moçambique, afirma que aquele “movimento de libertação e emancipação dos mais pobres foi capturado por uma elite predadora, responsável pela situação atual”. — Sou um dos autores do Hino Nacional, escrito por um coletivo em discussão com o parlamento. Os reacionários eram contra o verso “o sol vermelho para sempre brilhará” e mudamos para “o sol de junho”. Mas quem rejeitava o verso “nenhum tirano nos irá escravizar” eram os deputados da Frelimo, pois diziam que jamais seriam tiranos. Ora, eles já pressupunham que seriam eternamente o poder — recorda Mia. — Agora, temos que nos libertar daqueles que comandaram a luta pela libertação nacional. A tumultuada história do país africano é revisitada continuamente pela literatura de Mia, que venceu o Prêmio Camões em 2013. “Terra sonâmbula”, seu romance mais celebrado, de 1992, é ambientado durante a guerra civil que se estendeu de 1976 a 1994. Entre 2015 e 2017, ele publicou a trilogia “As areias do imperador”, que recua ainda mais no tempo e narra a queda de Ngungunyane, o último monarca do Estado de Gaza (no sul de Moçambique, sem relação com a Faixa de Gaza), derrotado pelos portugueses em 1895. O estopim de “A cegueira do rio” é o episódio que marcou a chegada da Primeira Guerra Mundial em Moçambique: o assassinato de 11 soldados africanos e um sargento português por militares alemães em agosto de 1914. Mia explica que o retorno literário ao passado é “um convite à lembrança, não ao julgamento e à vingança”. Em Moçambique, diz ele, persiste a tentação de esquecer eventos traumáticos. — Quando quis escrever sobre a escravatura, alguém me disse: “não desperte esses fantasmas” — conta o autor. — Não existe memória das cumplicidades internas que permitiram a escravatura, e quem lutou ao lado dos portugueses, contra a Independência, é como se não tivesse existido. ‘A beleza do provérbio é incorporar a verdade numa forma poética’ Em “A cegueira do rio”, a única testemunha da matança dos soldados é Nataniel Jalasi. Desde criança, ele desejava ser um “muzungo” — que quer dizer “branco” na língua kiswahili (ou “patrão”, independentemente da raça). “Muzungo”, porém, não é uma identidade fixa, esclarece Mia. Se um branco aprende a língua e incorpora a religiosidade local, ele se torna um “mulandi” (negro). Essa “mobilidade ontológica”, afirma o escritor, é característica das culturas africanas e explica por que os muçulmanos de Moçambique “vão à missa de manhã, à mesquita à tarde e à noite cultuam os antepassados”. Apesar de insurreições teocráticas no norte do país, lá o fundamentalismo islâmico tem menos força que o evangélico, propagado na TV local por igrejas brasileiras. ‘Errar bonito’ O realismo fantástico que marca as obras de Mia também dá as caras em “A cegueira do rio”. Nataniel consegue se transformar num “muzungo” porque sabe ler e escrever, habilidades reservadas quase que exclusivamente aos brancos. Quando uma estranha epidemia torna os brancos analfabetos, a leitura e a escrita passam a ser monopólio dos negros e inverte-se uma hierarquia determinante para o colonialismo. Ao restringir aos negros uma habilidade historicamente usada como arma pelo Ocidente, o romance se torna uma celebração da sabedoria africana, que é ilustrada pelos provérbios que servem de epígrafe a cada um dos capítulos. O preferido de Mia é um ruandês, que abre o livro: “Ninguém odeia mais a si mesmo do que aquele que odeia os outros”. — Esse provérbio é atual, profundo e não poderia ser dito de outra maneira. A beleza do provérbio é incorporar a verdade numa forma poética — diz. — Inventei vários dos provérbios do livro. Parecia que eu estava fazendo uma coisa errada, mas aprendi com Manoel de Barros (poeta mato-grossense, 1916-2014) que “errar bonito é um jeito de fazer poesia”. Uma personagem de “A cegueira do rio”, uma batuqueira, ordena que ensinem os “vazungo” (plural de “muzungo”) a escreverem ao menos uma única palavra. “Essa palavra é ‘desculpa’”, diz ela, acrescentando que eles devem aprender de uma vez que “estas terras têm donos e são muito antigos”. Mia está de acordo com sua personagem: — É preciso reparar o presente, porque o passado continua aqui. A África ainda é vista simplesmente como produtora de matéria-prima. É uma relação colonial, agora regida por elites locais em cumplicidade com as de fora.
Qual é a sua reação?