José Eduardo Agualusa: 'Um escritor que não é inteiramente livre já não é mais um escritor'

Em turnê no brasil, escritor abre exposição de fotos no Rio, participa de eventos e lança romance em que revisita passado de seu país para 'dar outra versão da História de Angola' De todos os personagens de “Mestre dos batuques”, novo romance do escritor angolano e colunista do GLOBO José Eduardo Agualusa, dois são inspirados em figuras que de fato existiram. Um deles é António Cosme, próspero comerciante negro que comprou a liberdade de portugueses brancos capturados e escravizados no Bailundo, reino no Planalto Central de Angola que se manteve independente durante a maior parte do período colonial. O outro é Luís Gomes Mambo (baseado em Luís Gomes Sambo), descrito como militar, físico diletante, colecionador de plantas e fotógrafo amador. “A fotografia é arte de empalhar tempo”, diz o alferes. “Fotógrafos são os taxidermistas do instante.” 'Milicianos': livro finalista do Prêmio Jabuti é fruto do podcast 'Pistoleiros', produzido pelo GLOBO e pelo Globoplay Premiado podcast 'Projeto Querino' vira livro: 'É sobre a História, mas é também sobre o Brasil de hoje', diz Tiago Rogero O personagem real, porém, não foi fotógrafo. Mambo “puxou” essa característica do próprio Agualusa, que chegou ontem ao Brasil para lançar “Mestre dos batuques” e inaugurar a exposição “Gramática do instante e do infinito”, na Galeria Mercedes Viegas, no Horto, na Zona Sul do Rio. A mostra, que já passou por Maputo, a capital moçambicana, e por Lisboa, Guarda e Beja, em Portugal, estreia amanhã e fica em cartaz até o dia 29. — A fotografia surgiu para mim como uma necessidade de documentar, de recolher elementos que mais tarde poderiam me levar a escrever — diz o autor, que conversou com o GLOBO por vídeo dos Açores, arquipélago português, antes de viajar ao Brasil. — Vou andando e, quando encontro algo que me comove, tiro uma foto. É como se tomasse notas para escrever. Registro de Agualusa de Moçambique, onde ele vive, e que está em mostra no Rio José Eduardo Agualusa “A nova arte da fotografia autenticava a realidade: dava-lhe não só credibilidade, como além disso, preservava para o futuro”, afirma Leila Pinto, a narradora de “Mestre dos batuques”. Ela, que é nossa contemporânea, investiga a história de amor de seus avós, o tenente Pinto Jan e Lucrécia Van-Dunem, em meio a episódios turbulentos da história angolana, na virada do século XX. Quando reconstrói o passado, Leila é uma narradora discreta, quase não se nota sua presença onisciente. Às vezes, ela interrompe a história e, do presente, dirige-se diretamente ao leitor para fazer esclarecimentos ou comentários como este: “Acredito que só ressuscitando certas palavras é possível ressuscitar momentos muito específicos do passado.” Projeto literário As ponderações da narradora sobre o poder da fotografia e das palavras não deixam de elucidar o projeto literário de Agualusa, que, romance após romance, revisita a história de Angola em busca da identidade coletiva do país. Em “O vendedor de passados”, de 2004, ele ambientou a trama durante a guerra civil angolana (1975-2002) e elegeu como protagonista um sujeito que fornece histórias pregressas e repletas de honra aos membros da elite do país — o livro virou filme com Lázaro Ramos e Alinne Moraes. Em 2012, ele publicou seu romance mais celebrado, “Teoria geral do esquecimento”, que acompanha uma mulher que se tranca em seu apartamento às vésperas da Independência de Angola (1975) e atravessa três décadas sem saber das mudanças ocorridas na sua terra. Já em “Rainha Ginga”, de 2014, o escritor voltou ainda mais ao passado angolano para recriar a vida da monarca africana que dirigiu a região no século XVII. A História narrada por Agualusa, porém, não é só aquela ensinada nas escolas. Mesmo quando se debruça sobre o passado de seu país, o autor costuma flertar com o realismo mágico. É que, para ele, a História também é um pouco ficção. — A História também é fictícia porque o que realmente aconteceu é extremamente subjetivo. Cada um tem a sua versão dos episódios. Defendo que a História que aprendemos na escola deveria recolher essas diferentes versões — afirma. — O que tento fazer é dar uma outra versão da história de Angola. Por muito tempo, só tínhamos versões europeias. Só muito recentemente as literaturas africanas começaram a tentar dar outra versão dos acontecimentos. Neste livro novo, afasto-me deliberadamente da História, construo uma História paralela, digamos assim. A princípio, “Mestre dos batuques” parece um romance histórico: narra os esforços dos portugueses para subjugar o Reino Bailundo no início do século XX. No meio dos fatos, porém, surge a ficção. A campanha contra o reino africano de fato aconteceu, mas no romance soldados portugueses brotam mortos no meio da mata, sem qualquer ferimento ou indício de luta, alguns ainda com os olhos abertos e uma expressão de terror no rosto. O tenente Jan Pinto, conhecedor das culturas africanas, é enviado para o Planalto Central para desvendar o mistério ao lado de Luís Gom

Nov 6, 2024 - 05:40
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José Eduardo Agualusa: 'Um escritor que não é inteiramente livre já não é mais um escritor'

Em turnê no brasil, escritor abre exposição de fotos no Rio, participa de eventos e lança romance em que revisita passado de seu país para 'dar outra versão da História de Angola' De todos os personagens de “Mestre dos batuques”, novo romance do escritor angolano e colunista do GLOBO José Eduardo Agualusa, dois são inspirados em figuras que de fato existiram. Um deles é António Cosme, próspero comerciante negro que comprou a liberdade de portugueses brancos capturados e escravizados no Bailundo, reino no Planalto Central de Angola que se manteve independente durante a maior parte do período colonial. O outro é Luís Gomes Mambo (baseado em Luís Gomes Sambo), descrito como militar, físico diletante, colecionador de plantas e fotógrafo amador. “A fotografia é arte de empalhar tempo”, diz o alferes. “Fotógrafos são os taxidermistas do instante.” 'Milicianos': livro finalista do Prêmio Jabuti é fruto do podcast 'Pistoleiros', produzido pelo GLOBO e pelo Globoplay Premiado podcast 'Projeto Querino' vira livro: 'É sobre a História, mas é também sobre o Brasil de hoje', diz Tiago Rogero O personagem real, porém, não foi fotógrafo. Mambo “puxou” essa característica do próprio Agualusa, que chegou ontem ao Brasil para lançar “Mestre dos batuques” e inaugurar a exposição “Gramática do instante e do infinito”, na Galeria Mercedes Viegas, no Horto, na Zona Sul do Rio. A mostra, que já passou por Maputo, a capital moçambicana, e por Lisboa, Guarda e Beja, em Portugal, estreia amanhã e fica em cartaz até o dia 29. — A fotografia surgiu para mim como uma necessidade de documentar, de recolher elementos que mais tarde poderiam me levar a escrever — diz o autor, que conversou com o GLOBO por vídeo dos Açores, arquipélago português, antes de viajar ao Brasil. — Vou andando e, quando encontro algo que me comove, tiro uma foto. É como se tomasse notas para escrever. Registro de Agualusa de Moçambique, onde ele vive, e que está em mostra no Rio José Eduardo Agualusa “A nova arte da fotografia autenticava a realidade: dava-lhe não só credibilidade, como além disso, preservava para o futuro”, afirma Leila Pinto, a narradora de “Mestre dos batuques”. Ela, que é nossa contemporânea, investiga a história de amor de seus avós, o tenente Pinto Jan e Lucrécia Van-Dunem, em meio a episódios turbulentos da história angolana, na virada do século XX. Quando reconstrói o passado, Leila é uma narradora discreta, quase não se nota sua presença onisciente. Às vezes, ela interrompe a história e, do presente, dirige-se diretamente ao leitor para fazer esclarecimentos ou comentários como este: “Acredito que só ressuscitando certas palavras é possível ressuscitar momentos muito específicos do passado.” Projeto literário As ponderações da narradora sobre o poder da fotografia e das palavras não deixam de elucidar o projeto literário de Agualusa, que, romance após romance, revisita a história de Angola em busca da identidade coletiva do país. Em “O vendedor de passados”, de 2004, ele ambientou a trama durante a guerra civil angolana (1975-2002) e elegeu como protagonista um sujeito que fornece histórias pregressas e repletas de honra aos membros da elite do país — o livro virou filme com Lázaro Ramos e Alinne Moraes. Em 2012, ele publicou seu romance mais celebrado, “Teoria geral do esquecimento”, que acompanha uma mulher que se tranca em seu apartamento às vésperas da Independência de Angola (1975) e atravessa três décadas sem saber das mudanças ocorridas na sua terra. Já em “Rainha Ginga”, de 2014, o escritor voltou ainda mais ao passado angolano para recriar a vida da monarca africana que dirigiu a região no século XVII. A História narrada por Agualusa, porém, não é só aquela ensinada nas escolas. Mesmo quando se debruça sobre o passado de seu país, o autor costuma flertar com o realismo mágico. É que, para ele, a História também é um pouco ficção. — A História também é fictícia porque o que realmente aconteceu é extremamente subjetivo. Cada um tem a sua versão dos episódios. Defendo que a História que aprendemos na escola deveria recolher essas diferentes versões — afirma. — O que tento fazer é dar uma outra versão da história de Angola. Por muito tempo, só tínhamos versões europeias. Só muito recentemente as literaturas africanas começaram a tentar dar outra versão dos acontecimentos. Neste livro novo, afasto-me deliberadamente da História, construo uma História paralela, digamos assim. A princípio, “Mestre dos batuques” parece um romance histórico: narra os esforços dos portugueses para subjugar o Reino Bailundo no início do século XX. No meio dos fatos, porém, surge a ficção. A campanha contra o reino africano de fato aconteceu, mas no romance soldados portugueses brotam mortos no meio da mata, sem qualquer ferimento ou indício de luta, alguns ainda com os olhos abertos e uma expressão de terror no rosto. O tenente Jan Pinto, conhecedor das culturas africanas, é enviado para o Planalto Central para desvendar o mistério ao lado de Luís Gomes Mambo, fotógrafo amador. Lá, ele descobre que um amigo de infância ocupa uma posição privilegiada na corte do Bailundo: é mestre dos batuques, responsável por escolher ritmos adequados a cada ocasião, além de conduzir tropas e aplicar multas e castigos. Agualusa nasceu em 1963 em Huambo, no mesmo Planalto Central angolano retratado no romance. Retornou a esses cenários de infância durante as pesquisas de seu livro anterior, “Vidas e mortes de Abel Chivukuvuku: uma biografia de Angola”, publicado no ano passado e ainda inédito no Brasil. Chivukuvuku é um ex-guerrilheiro ainda ativo na política angolana e descendente da realeza do Bailundo. Durante uma viagem de trem em Portugal, com as paisagens do interior de Angola na cabeça, ele descobriu o enredo de “Mestre dos batuques”. Na ocasião, ele digeria leituras recentes sobre drogas sonoras, isto é, ritmos que podem conduzir ao transe (como certas batucadas). — A casa de minha infância estava na fronteira do asfalto com o mato. Às vezes, à noite, ouvíamos os batuques das aldeias próximas, que nós chamávamos de “quimbos” — recorda o escritor. Jan, o herói do romance, percebe os batuques como “substância viva”. Nascido no interior de Angola e descendente de europeus (dizem que parece sueco ou holandês), ele se interessa pela “filosofia dos negros” e fala umbundo (idioma do Reino Bailundo) melhor que Mambo, um angolano negro. Já Kavita, o mestre dos batuques, foi educado por missionários americanos, estudou na Europa e sonhava em reinventar a “Odisseia” em umbundo. Esses dois personagens representam um princípio da literatura e do pensamento político do escritor: a defesa do diálogo entre diferentes culturas como antídoto ao ódio e à intolerância. Agualusa define a literatura como o “desafio e o exercício da alteridade” e se opõe ao discurso que questiona a legitimidade de escritores abordarem experiências que não viveram. Ele afirma que “essa questão nunca chegou a colocar-se em Angola” e que nunca se sentiu questionado por ser um autor branco, descendente de europeus, a escrever sobre a história de um país africano. — Esse modismo intelectual que está condenado a desparecer, porque não faz sentido nenhum, é uma atitude antiliterária. O lado mais bonito da literatura é convidar o leitor a ser outro por algum tempo. Um escritor que não é inteiramente livre já não é mais um escritor. Não se pode escrever sob pressão ou com medo — diz. — Um autor é uma entidade múltipla, que precisa o tempo todo saber ser outro e, em vez de reproduzir este mundo, criar mundos novos que possa entregar ao leitor. Serviço: ‘Mestre dos batuques’ Autor: José Eduardo Agualusa. Editora: Tusquets. Páginas: 224. Preço: R$ 69,90.

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