Crônica de uma revanche: Trump capitalizou insatisfação com os democratas e virou o jogo
Campanha de Trump pautou os temas ao longo da corrida, soube explorar falhas dos governistas e aproveitou tempo curto de campanha de Kamala Quando Donald Trump decidiu que disputaria pela terceira vez a Presidência dos EUA, seu círculo mais próximo entendeu não haver caminho para a vitória a não ser transformar a disputa em um plebiscito sobre o já impopular governo de seu provável adversário, o presidente Joe Biden. Revanche. O anúncio da candidatura foi feito em novembro de 2022, uma semana após o resultado das eleições de meio de mandato. Ao contrário do que previam as pesquisas à época, as urnas não confirmaram a onda vermelha e empurraram ainda mais o Partido Republicano, ávido para recuperar o poder, para o colo do trumpismo. Eleições americanas 2024: Trump vence Kamala Harris e voltará à Presidência dos EUA; acompanhe ao vivo Kamala reconhece vitória, mas envia recado para Trump: 'Admito derrota, mas não vou ceder nas lutas que impulsionaram campanha' A frustração com o resultado e o sucesso da mobilização democrata em torno do direito ao aborto, cinco meses após a Suprema Corte derrubá-lo, com o voto de juízes conservadores indicados por Trump, guiaram os estrategistas na definição dos temas centrais que o ex-presidente deveria abordar nas prévias e na campanha geral — o crescente custo de vida; o aumento constante da entrada de imigrantes em situação irregular no país; e o que percebiam ser o afastamento do Partido Democrata do centro ideológico, exemplificado tanto pelas chamadas guerras culturais quanto pelo o protagonismo do Estado na Bidenomics. Também definiram tópicos que Trump precisaria virar de pernas para o ar nos próximos dois anos: o fim da permissão federal para a interrupção da gravidez seria reapresentado como mesura ao sistema federativo do país, com a maioria em cada estado decidindo sobre o tema nas urnas; e a batata quente da ameaça à democracia, após a invasão do Capitólio, em janeiro do ano anterior, seria simplesmente jogada para o outro lado. E com combustível produzido por eles próprios. Trump de volta: "A América nos deu um mandato sem precedentes e poderoso" A multiplicação de ações na Justiça contra o ex-presidente, os dois processos de impeachment e as seguidas acusações de fascismo. Quem queria impedir milhares de americanos de votarem em quem eles bem quisessem, retrucaram, é que ameaça o jogo político. O vitimismo foi, desde então, considerado internamente estratégia ávida para se aumentar a margem de votos nas zonas rurais e desindustrializadas, inclusive quando Trump se tornou o primeiro ex- mandatário condenado. Essa seria uma candidatura, uma vez mais, de insurreição contra o status quo e as elites progressistas e identitárias representadas pelo outro lado. Ao uso dos imigrantes em situação irregular como bode expiatório para os problemas estruturais do país, com mentiras como as dos haitianos que comeriam cães e gatos em Ohio, seguiu-se a frase que estabeleceria de vez a comparação plebiscitária desejada pelo comando da campanha. E que Trump repetiria até seu comício derradeiro, em Michigan, na noite de segunda-feira: “A decisão este ano é simples: você tem mais dinheiro no bolso agora do que há quatro anos?”. Nenhum esforço real foi feito em busca do centro moderado, que viria naturalmente para o lado republicano ao colocarem, eles também, a mão no bolso. A ex-governadora Nikki Haley, principal adversária de Trump nas primárias, sequer foi convidada a participar de um comício. Galerias Relacionadas Pesquisas internas mostravam a crescente insatisfação de trabalhadores brancos, latinos e negros com a receita de Biden para colocar a economia americana de pé após a pandemia. Quanto mais os números de aprovação do democrata desabavam, mais aumentava a confiança no aumento da coalizão trumpista e em vitória musculosa nas eleições, como de fato ocorreu. Por duas vezes o comando da campanha acreditou ter vencido antecipadamente a disputa. Após o primeiro debate e quando o presidente reagiu de forma dramática à tentativa de assassinato em um comício na Pensilvânia. Na Convenção Republicana, no Wisconsin, realizada dias após o atentado, discutia-se abertamente quem iria ocupar qual quinhão do governo, inclusive os que acabariam com a Secretaria de Educação, promessa de campanha de Trump. O momento mais tenso, após os atentados, foi com o anúncio da entrada da vice Kamala Harris no lugar de Biden. Indignado, Trump se tornou mais errático, partiu para ataques pessoais e perdeu o debate para a adversária. A campanha se assustou com o fluxo de dinheiro entrando no lado oposto. Análise: Democratas precisam lamber feridas e entender se urnas indicam país radicalmente diferente de 2016 Mas se o ex-presidente passou a improvisar mais nos comícios, com seguidas derrapadas, a campanha seguia disciplinada e fiel ao plano original. O resultado mais impressionante é a migração dos homens latinos do lado democrata para o campo trumpista. A boca de urna da ABC News/Washington Pos
Campanha de Trump pautou os temas ao longo da corrida, soube explorar falhas dos governistas e aproveitou tempo curto de campanha de Kamala Quando Donald Trump decidiu que disputaria pela terceira vez a Presidência dos EUA, seu círculo mais próximo entendeu não haver caminho para a vitória a não ser transformar a disputa em um plebiscito sobre o já impopular governo de seu provável adversário, o presidente Joe Biden. Revanche. O anúncio da candidatura foi feito em novembro de 2022, uma semana após o resultado das eleições de meio de mandato. Ao contrário do que previam as pesquisas à época, as urnas não confirmaram a onda vermelha e empurraram ainda mais o Partido Republicano, ávido para recuperar o poder, para o colo do trumpismo. Eleições americanas 2024: Trump vence Kamala Harris e voltará à Presidência dos EUA; acompanhe ao vivo Kamala reconhece vitória, mas envia recado para Trump: 'Admito derrota, mas não vou ceder nas lutas que impulsionaram campanha' A frustração com o resultado e o sucesso da mobilização democrata em torno do direito ao aborto, cinco meses após a Suprema Corte derrubá-lo, com o voto de juízes conservadores indicados por Trump, guiaram os estrategistas na definição dos temas centrais que o ex-presidente deveria abordar nas prévias e na campanha geral — o crescente custo de vida; o aumento constante da entrada de imigrantes em situação irregular no país; e o que percebiam ser o afastamento do Partido Democrata do centro ideológico, exemplificado tanto pelas chamadas guerras culturais quanto pelo o protagonismo do Estado na Bidenomics. Também definiram tópicos que Trump precisaria virar de pernas para o ar nos próximos dois anos: o fim da permissão federal para a interrupção da gravidez seria reapresentado como mesura ao sistema federativo do país, com a maioria em cada estado decidindo sobre o tema nas urnas; e a batata quente da ameaça à democracia, após a invasão do Capitólio, em janeiro do ano anterior, seria simplesmente jogada para o outro lado. E com combustível produzido por eles próprios. Trump de volta: "A América nos deu um mandato sem precedentes e poderoso" A multiplicação de ações na Justiça contra o ex-presidente, os dois processos de impeachment e as seguidas acusações de fascismo. Quem queria impedir milhares de americanos de votarem em quem eles bem quisessem, retrucaram, é que ameaça o jogo político. O vitimismo foi, desde então, considerado internamente estratégia ávida para se aumentar a margem de votos nas zonas rurais e desindustrializadas, inclusive quando Trump se tornou o primeiro ex- mandatário condenado. Essa seria uma candidatura, uma vez mais, de insurreição contra o status quo e as elites progressistas e identitárias representadas pelo outro lado. Ao uso dos imigrantes em situação irregular como bode expiatório para os problemas estruturais do país, com mentiras como as dos haitianos que comeriam cães e gatos em Ohio, seguiu-se a frase que estabeleceria de vez a comparação plebiscitária desejada pelo comando da campanha. E que Trump repetiria até seu comício derradeiro, em Michigan, na noite de segunda-feira: “A decisão este ano é simples: você tem mais dinheiro no bolso agora do que há quatro anos?”. Nenhum esforço real foi feito em busca do centro moderado, que viria naturalmente para o lado republicano ao colocarem, eles também, a mão no bolso. A ex-governadora Nikki Haley, principal adversária de Trump nas primárias, sequer foi convidada a participar de um comício. Galerias Relacionadas Pesquisas internas mostravam a crescente insatisfação de trabalhadores brancos, latinos e negros com a receita de Biden para colocar a economia americana de pé após a pandemia. Quanto mais os números de aprovação do democrata desabavam, mais aumentava a confiança no aumento da coalizão trumpista e em vitória musculosa nas eleições, como de fato ocorreu. Por duas vezes o comando da campanha acreditou ter vencido antecipadamente a disputa. Após o primeiro debate e quando o presidente reagiu de forma dramática à tentativa de assassinato em um comício na Pensilvânia. Na Convenção Republicana, no Wisconsin, realizada dias após o atentado, discutia-se abertamente quem iria ocupar qual quinhão do governo, inclusive os que acabariam com a Secretaria de Educação, promessa de campanha de Trump. O momento mais tenso, após os atentados, foi com o anúncio da entrada da vice Kamala Harris no lugar de Biden. Indignado, Trump se tornou mais errático, partiu para ataques pessoais e perdeu o debate para a adversária. A campanha se assustou com o fluxo de dinheiro entrando no lado oposto. Análise: Democratas precisam lamber feridas e entender se urnas indicam país radicalmente diferente de 2016 Mas se o ex-presidente passou a improvisar mais nos comícios, com seguidas derrapadas, a campanha seguia disciplinada e fiel ao plano original. O resultado mais impressionante é a migração dos homens latinos do lado democrata para o campo trumpista. A boca de urna da ABC News/Washington Post mostra que 59% deles votaram em Biden em 2020 e apenas 44% em Kamala, enquanto Trump passou de 44% para 54%. Entre os novos eleitores, outro alvo da campanha, os ganhos foram do mesmo monte, com destaque para os homens mais jovens. Deu certo. Campanha curta E se os republicanos já apresentavam suas armas há dois anos, Kamala teve apenas 100 dias para reerguer o que uma estrategista democrata classificou como “recuperação do Titanic em pleno naufrágio”. Ao contrário dos republicanos, que têm uma estrutura mais enxuta e terceirizam para think tanks e grupos financiados por doadores graúdos boa parte da operação de campo, os democratas contam com uma máquina de voluntários e militantes. Eles tiveram entrada mais fácil no governo Biden do que no de Obama. Ameaça de deportação: Desiludidos, imigrantes latinos pedem a Trump que não feche as fronteiras dos Estados Unidos Um dos trunfos na reta final, acreditavam, seria a organização que sabia onde estava cada eleitor cativo, em cada seção de cada distrito. Outro era a expansão do voto nos subúrbios, iniciada em 2018, como reação ao trumpismo e concentrada em mulheres com curso superior que não se viam à esquerda do tabuleiro político mas também não toleravam a vulgaridade e o autoritarismo populista do trumpismo. Eram elas que iriam, tal qual um enxame, garantir a vitória de Kamala. O movimento não ocorreu. Galerias Relacionadas O Partido Democrata amanheceu menor do que quando perdeu para Trump em 2016. E a discussão sobre onde a campanha presidencial errou começou ainda na noite de terça-feira. Como seria se Biden tivesse seguido candidato? E se o governador da decisiva Pensilvânia, Josh Shapiro, fosse o vice de Kamala? Os três governadores dos estados decisivos da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin trabalharam o suficiente? E se Trump tivesse concordado com um segundo debate? E se a vice não tivesse respondido, no The View”, que “não me vem nada à mente” ao ser questionada sobre as diferenças de seu governo em relação ao de Biden? Também começaram discussões mais complexas e delicadas, que passam pela misoginia do eleitor, com as derrotas de Kamala e Hillary Clinton para o mesmo Trump, e do racismo entranhado no país. Grilo falante da esquerda com pinta de Geppetto, o senador Bernie Sanders resumiu assim a migração crescente dos que ganham menos para a direita: “não deveria ser surpresa os trabalhadores abandonarem os democratas após o partido os enjeitar”.
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