Censo retrata expansão das favelas do Itanhangá, que crescem em meio a casas de luxo
Antes dominadas pelas milícias e hoje alvos de disputas entre criminosos, comunidades da região ganharam quase 12 mil domicílios. Muzema foi a que mais cresceu em toda a cidade: 188% de aumento populacional Ao se mudar há cerca de 15 anos para uma área pouco habitada, chamada na época de Corredor do Itanhangá, na Zona Oeste Rio, a família de Daniele Braga (nome fictício), de classe média baixa, acreditou na promessa de uma vida melhor e mais tranquila. A vizinhança era rodeada pela Mata Atlântica, e os problemas causados pela infraestrutura precária eram ofuscados pelo sentimento de estar numa região aparentemente sem violência. Levadas pela mesma esperança, outras famílias se mudaram para lá, causando uma explosão populacional numa área sem regularização fundiária, anos depois rebatizada como Muzema. Muito além do Nordeste: Rocinha atualmente atrai até estrangeiros da Colômbia, Bolívia e Argentina Censo 2022: Rio é a cidade do país com mais apartamentos em favelas Os dados do Censo 2022 divulgados anteontem pelo IBGE retratam a transformação do Itanhangá, bairro vizinho à Barra da Tijuca onde as favelas cresceram desordenadamente na última década. A maior e uma das mais antigas da região é Rio das Pedras, berço da milícia e hoje a segunda maior do país em domicílios ocupados. Salto populacional Já a Muzema foi a comunidade do Rio que mais ganhou novos moradores na década passada: de 4,5 mil (em 2010) passou para quase 13 mil habitantes — um aumento de 188%. A explosão é ainda maior ao comparar com o Censo de 2000, quando a favela era formada por apenas 110 domicílios com 368 moradores. A Tijuquinha também figura no ranking de maior crescimento populacional, ficando na terceira posição na cidade. Essa explosão ocorreu na contramão do restante do município, que perdeu 43 mil moradores em favelas. — A gente achou que era perfeito. Da casa se construiu um prédio familiar. Mas depois chegou a milícia e tivemos que começar a pagar as taxas, o “condomínio” como eles chamam — diz Daniele. Sob a sombra do poder público, os grupos paramilitares se estabeleceram e se intensificaram na região. Um dos líderes da milícia que se fortaleceu foi o ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, também chefe do grupo de matadores de aluguel Escritório do Crime. Por anos, ele viu que poderia ter lucros exorbitantes no Itanhangá com a grilagem de terras e a venda de apartamentos em áreas invadidas por milícias. O crescimento das comunidades no Itanhangá Censo Não à toa o IBGE constatou que Rio das Pedras é a segunda favela com mais apartamentos do país. Somados os números da comunidade Amigos de Rio das Pedras, ela supera a Rocinha, hoje em primeiro lugar no ranking. Vizinhas, essas favelas do Itanhangá são cortadas apenas pela Avenida Engenheiro Souza Filho e historicamente são contabilizadas de forma distinta no Censo. O gigantismo de Rio das Pedras já havia sido apurado na pesquisa anterior do IBGE. Mas o que os números agora demonstram é que o modus operandi dos milicianos replicados nas outras favelas do Itanhangá contribuiu para o crescimento desordenado da região. No intervalo entre um Censo e outro, foram construídas 11,5 mil novas moradias — muitas em pequenos prédios. Prédios desabaram Na Muzema, dois prédios erguidos sob as bênçãos da milícia desabaram em 2019 causando a morte de 24 pessoas. Eles foram construídos no condomínio Figueiras do Itanhangá e ruíram após uma forte chuva. O processo contra os acusados pela construção e venda dos apartamentos ainda corre no Tribunal de Justiça, e eles respondem à ação em liberdade. Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), explica que o “o crescimento das milícias é inseparável do boom imobiliário” que ocorreu na década passada. — Investigações mostram como isso é operado desde o loteamento, passando pela construção, compra, venda de imóveis e até a administração do condomínio. Naquela região, se formaram as milícias cujo modelo de negócio se assenta justamente sobre a atuação no mercado imobiliário e também em todos os mercados anexos. Mas ao mesmo tempo são casas ocupadas por famílias de baixa renda que buscam exercer seu direito a moradia — diz. Com os novos moradores, a milícia da região também se fortaleceu e enriqueceu cobrando taxas ainda maiores dos comerciantes das favelas. As lojas, sobretudo aquelas de itens essenciais como botijão de gás e água, precisavam passar pelo crivo dos criminosos. O lucro do crime não era baixo: os números do IBGE mostram que são mais de quatro mil estabelecimentos comerciais em Rio das Pedras, o maior número numa favela do país, apesar de em termos populacionais a comunidade ser apenas a quinta. Hirata conta que, nos últimos anos, prisões e a morte do miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, levaram a um enfraquecimento da milícia. Ao perceber isso, traficantes do Comando Vermelho começaram a realizar investidas para tomar o território: — O bairro não é apenas um
Antes dominadas pelas milícias e hoje alvos de disputas entre criminosos, comunidades da região ganharam quase 12 mil domicílios. Muzema foi a que mais cresceu em toda a cidade: 188% de aumento populacional Ao se mudar há cerca de 15 anos para uma área pouco habitada, chamada na época de Corredor do Itanhangá, na Zona Oeste Rio, a família de Daniele Braga (nome fictício), de classe média baixa, acreditou na promessa de uma vida melhor e mais tranquila. A vizinhança era rodeada pela Mata Atlântica, e os problemas causados pela infraestrutura precária eram ofuscados pelo sentimento de estar numa região aparentemente sem violência. Levadas pela mesma esperança, outras famílias se mudaram para lá, causando uma explosão populacional numa área sem regularização fundiária, anos depois rebatizada como Muzema. Muito além do Nordeste: Rocinha atualmente atrai até estrangeiros da Colômbia, Bolívia e Argentina Censo 2022: Rio é a cidade do país com mais apartamentos em favelas Os dados do Censo 2022 divulgados anteontem pelo IBGE retratam a transformação do Itanhangá, bairro vizinho à Barra da Tijuca onde as favelas cresceram desordenadamente na última década. A maior e uma das mais antigas da região é Rio das Pedras, berço da milícia e hoje a segunda maior do país em domicílios ocupados. Salto populacional Já a Muzema foi a comunidade do Rio que mais ganhou novos moradores na década passada: de 4,5 mil (em 2010) passou para quase 13 mil habitantes — um aumento de 188%. A explosão é ainda maior ao comparar com o Censo de 2000, quando a favela era formada por apenas 110 domicílios com 368 moradores. A Tijuquinha também figura no ranking de maior crescimento populacional, ficando na terceira posição na cidade. Essa explosão ocorreu na contramão do restante do município, que perdeu 43 mil moradores em favelas. — A gente achou que era perfeito. Da casa se construiu um prédio familiar. Mas depois chegou a milícia e tivemos que começar a pagar as taxas, o “condomínio” como eles chamam — diz Daniele. Sob a sombra do poder público, os grupos paramilitares se estabeleceram e se intensificaram na região. Um dos líderes da milícia que se fortaleceu foi o ex-capitão da PM Adriano da Nóbrega, também chefe do grupo de matadores de aluguel Escritório do Crime. Por anos, ele viu que poderia ter lucros exorbitantes no Itanhangá com a grilagem de terras e a venda de apartamentos em áreas invadidas por milícias. O crescimento das comunidades no Itanhangá Censo Não à toa o IBGE constatou que Rio das Pedras é a segunda favela com mais apartamentos do país. Somados os números da comunidade Amigos de Rio das Pedras, ela supera a Rocinha, hoje em primeiro lugar no ranking. Vizinhas, essas favelas do Itanhangá são cortadas apenas pela Avenida Engenheiro Souza Filho e historicamente são contabilizadas de forma distinta no Censo. O gigantismo de Rio das Pedras já havia sido apurado na pesquisa anterior do IBGE. Mas o que os números agora demonstram é que o modus operandi dos milicianos replicados nas outras favelas do Itanhangá contribuiu para o crescimento desordenado da região. No intervalo entre um Censo e outro, foram construídas 11,5 mil novas moradias — muitas em pequenos prédios. Prédios desabaram Na Muzema, dois prédios erguidos sob as bênçãos da milícia desabaram em 2019 causando a morte de 24 pessoas. Eles foram construídos no condomínio Figueiras do Itanhangá e ruíram após uma forte chuva. O processo contra os acusados pela construção e venda dos apartamentos ainda corre no Tribunal de Justiça, e eles respondem à ação em liberdade. Daniel Hirata, coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), explica que o “o crescimento das milícias é inseparável do boom imobiliário” que ocorreu na década passada. — Investigações mostram como isso é operado desde o loteamento, passando pela construção, compra, venda de imóveis e até a administração do condomínio. Naquela região, se formaram as milícias cujo modelo de negócio se assenta justamente sobre a atuação no mercado imobiliário e também em todos os mercados anexos. Mas ao mesmo tempo são casas ocupadas por famílias de baixa renda que buscam exercer seu direito a moradia — diz. Com os novos moradores, a milícia da região também se fortaleceu e enriqueceu cobrando taxas ainda maiores dos comerciantes das favelas. As lojas, sobretudo aquelas de itens essenciais como botijão de gás e água, precisavam passar pelo crivo dos criminosos. O lucro do crime não era baixo: os números do IBGE mostram que são mais de quatro mil estabelecimentos comerciais em Rio das Pedras, o maior número numa favela do país, apesar de em termos populacionais a comunidade ser apenas a quinta. Hirata conta que, nos últimos anos, prisões e a morte do miliciano Wellington da Silva Braga, o Ecko, levaram a um enfraquecimento da milícia. Ao perceber isso, traficantes do Comando Vermelho começaram a realizar investidas para tomar o território: — O bairro não é apenas um novo lugar para a venda de drogas. Há todo esse mercado que já foi estruturado desde o seu início com vínculos estreitos com a criminalidade organizada. Agora o Comando Vermelho quer operar esses negócios que anteriormente eram das milícias. A população fica sendo extorquida o tempo inteiro, independentemente do grupo armado — explica. Antigo morador de Rio das Pedras, Ricardo Souza (nome fictício) conta que a exploração desses serviços hoje está sendo usada para custear a guerra que a milícia trava com o tráfico de drogas. Desde o ano passado, a facção Comando Vermelho tenta invadir favelas do Itanhangá. — Os criminosos de Rio das Pedras vêm conseguindo resistir, já que é uma favela maior e tem um comércio muito intenso. Tudo isso ajuda a financiar essa disputa — diz ele. Taxas aumentaram Devido à guerra entre as facções, Daniele Braga conta que na Muzema os criminosos aumentaram a “taxa de segurança” cobrada dos moradores. Ela lembra que, pouco antes da disputa na favela, começou a perceber que os milicianos haviam deixado de ter uma presença velada e passaram a ostentar as armas nas ruas, como se estivessem mostrando poder a qualquer um que tentasse interferir nos negócios da quadrilha. Semanas depois, ocorreram as primeiras tentativas de invasão dos traficantes. Com a intensificação dos confrontos perto de sua casa, ela deixou o local e alugou um apartamento numa área na própria Muzema que diz ser mais tranquila. — A gente não vê saída, para ser sincera. Olhei até apartamentos em bairros vizinhos como a Freguesia, mas, por questões financeiras, decidi ficar aqui. Penso que vou precisar abandonar de vez a casa e morar o resto da vida de aluguel. Hoje não me sinto segura de voltar para a minha antiga casa — diz.
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