Artigo: Regulação de mercados digitais: desafios institucionais à frente

Relatório do Ministério da Fazenda sugere o Cade como órgão responsável pela regulação concorrencial de plataformas digitais A partir da Tomada de Subsídios nº 1/2024 da Secretaria de Reformas Econômicas (SRE/MF), que contou com participação de diversos segmentos da sociedade, o Ministério da Fazenda divulgou em outubro o relatório “Plataformas Digitais: Aspectos Econômicos e Concorrenciais e Recomendações para Aprimoramentos Regulatórios no Brasil” [1]. O relatório traz não apenas um diagnóstico, como também uma proposta com sugestões para a implementação de uma política pública voltada a promover a concorrência no ambiente digital brasileiro. Até então, a discussão no Brasil estava limitada ao Projeto de Lei 2.768/2022, explicitamente inspirado no Digital Markets Act (DMA) da União Europeia, em trâmite na Câmara dos Deputados. No entanto, como já tive oportunidade de discutir em outra oportunidade [2], esse projeto de lei é superficial e gera significativa incerteza ao propor a atribuição da Anatel como órgão regulador de plataformas digitais, conferindo-lhe competências amplas e uma considerável dose de discricionaridade, sem balizas concretas para o seu exercício. Ademais, a proposta em trâmite no Congresso não leva em consideração as especificidades brasileiras, nem os desafios enfrentados pela própria União Europeia na implementação desse tipo de regulação. Nesse contexto, o relatório do Ministério da Fazenda é um passo importante para um debate mais profundo, que entenda as nuances da regulação ex ante (aqui considerada como obrigações impostas aos entes regulados, independentemente de prévia condenação por uma infração) num mercado dinâmico e inovador, propondo possíveis caminhos a serem seguidos no Brasil. De uma perspectiva institucional, o relatório traz algumas propostas bastante concretas, das quais ressalto as cinco principais. Primeiro, o Ministério da Fazenda sugere que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) seja o órgão responsável pela regulação concorrencial de plataformas digitais. Essa proposta é bastante razoável, além de mais adequada do que a escolha da Anatel como reguladora, conforme consta do PL 2.678/2022. A proposta segue a linha adotada em outras jurisdições experientes em regulação econômica, como a Alemanha, o Reino Unido e o Japão. No contexto brasileiro, o Cade é o órgão com mais experiência em questões concorrenciais em mercados digitais, podendo se valer dessa experiência para uma atuação ponderada e refletida sobre esses mercados. O Cade também possui um histórico relevante no desenho de obrigações comportamentais específicas para lidar com questões concorrenciais (os chamados “remédios concorrenciais”) — obrigações estas que serão o núcleo do “novo instrumento para a promoção da concorrência” abordado abaixo. Não bastasse isso, a dinâmica de plataformas digitais é distinta de mercados tradicionais de telecomunicações, distanciando-se dos desafios de infraestrutura tipicamente enfrentados pela Anatel. Finalmente, o fato de o Cade ser um órgão de atuação transversal na economia, com ação sobre diversos setores, permite-lhe ter uma posição mais neutra em relação às plataformas reguladas e estar menos sujeito à captura. Em segundo lugar, o relatório indica uma ampliação material das competências do Cade e a criação de um “novo instrumento para promoção da concorrência”, que permitiria ao órgão impor obrigações substantivas a certas “plataformas digitais de relevância sistêmica”, independentemente da prática de uma infração ou de qualquer ato de concentração econômica. Essa talvez seja a proposta mais ousada de todo o relatório e que ainda precisa de contornos mais definidos. Alguns pontos dessa proposta merecem destaque. Primeiro, de maneira salutar, a proposta traz mais flexibilidade do que a estratégia utilizada no DMA da União Europeia, evitando uma lista rígida de obrigações autoexecutáveis e aplicáveis a todas as plataformas designadas como de “relevância sistêmica”. Ou seja, caso acolhida a proposta, após a etapa de designação das plataformas relevantes, o Cade deveria definir obrigações substantivas específicas, caso a caso. Porém, ainda não está claro se a proposta sugere ampla discricionariedade do Cade para a imposição de um leque aberto de medidas regulatórias ou se haveria uma delimitação mais precisa das possíveis obrigações comportamentais a serem impostas, baseada em alguma lista pré-definida (algo similar à estrutura do artigo 19(a) da Lei de Defesa de Concorrência alemã). Nesse ponto, parece razoável pensar em alguma delimitação mais precisa das possíveis obrigações, estabelecendo alguns limites ao espaço de discricionariedade da autoridade. Isso pode trazer mais segurança jurídica e previsibilidade, sem uma rigidez excessiva. Ainda sobre este ponto, o relatório traz uma importante sugestão de que, nesse processo regulatório de imposição de obrigações substantivas, a empresa designada possa trazer “defesas de eficiência” e demonstrar qu

Nov 15, 2024 - 14:11
 0  0
Artigo: Regulação de mercados digitais: desafios institucionais à frente

Relatório do Ministério da Fazenda sugere o Cade como órgão responsável pela regulação concorrencial de plataformas digitais A partir da Tomada de Subsídios nº 1/2024 da Secretaria de Reformas Econômicas (SRE/MF), que contou com participação de diversos segmentos da sociedade, o Ministério da Fazenda divulgou em outubro o relatório “Plataformas Digitais: Aspectos Econômicos e Concorrenciais e Recomendações para Aprimoramentos Regulatórios no Brasil” [1]. O relatório traz não apenas um diagnóstico, como também uma proposta com sugestões para a implementação de uma política pública voltada a promover a concorrência no ambiente digital brasileiro. Até então, a discussão no Brasil estava limitada ao Projeto de Lei 2.768/2022, explicitamente inspirado no Digital Markets Act (DMA) da União Europeia, em trâmite na Câmara dos Deputados. No entanto, como já tive oportunidade de discutir em outra oportunidade [2], esse projeto de lei é superficial e gera significativa incerteza ao propor a atribuição da Anatel como órgão regulador de plataformas digitais, conferindo-lhe competências amplas e uma considerável dose de discricionaridade, sem balizas concretas para o seu exercício. Ademais, a proposta em trâmite no Congresso não leva em consideração as especificidades brasileiras, nem os desafios enfrentados pela própria União Europeia na implementação desse tipo de regulação. Nesse contexto, o relatório do Ministério da Fazenda é um passo importante para um debate mais profundo, que entenda as nuances da regulação ex ante (aqui considerada como obrigações impostas aos entes regulados, independentemente de prévia condenação por uma infração) num mercado dinâmico e inovador, propondo possíveis caminhos a serem seguidos no Brasil. De uma perspectiva institucional, o relatório traz algumas propostas bastante concretas, das quais ressalto as cinco principais. Primeiro, o Ministério da Fazenda sugere que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) seja o órgão responsável pela regulação concorrencial de plataformas digitais. Essa proposta é bastante razoável, além de mais adequada do que a escolha da Anatel como reguladora, conforme consta do PL 2.678/2022. A proposta segue a linha adotada em outras jurisdições experientes em regulação econômica, como a Alemanha, o Reino Unido e o Japão. No contexto brasileiro, o Cade é o órgão com mais experiência em questões concorrenciais em mercados digitais, podendo se valer dessa experiência para uma atuação ponderada e refletida sobre esses mercados. O Cade também possui um histórico relevante no desenho de obrigações comportamentais específicas para lidar com questões concorrenciais (os chamados “remédios concorrenciais”) — obrigações estas que serão o núcleo do “novo instrumento para a promoção da concorrência” abordado abaixo. Não bastasse isso, a dinâmica de plataformas digitais é distinta de mercados tradicionais de telecomunicações, distanciando-se dos desafios de infraestrutura tipicamente enfrentados pela Anatel. Finalmente, o fato de o Cade ser um órgão de atuação transversal na economia, com ação sobre diversos setores, permite-lhe ter uma posição mais neutra em relação às plataformas reguladas e estar menos sujeito à captura. Em segundo lugar, o relatório indica uma ampliação material das competências do Cade e a criação de um “novo instrumento para promoção da concorrência”, que permitiria ao órgão impor obrigações substantivas a certas “plataformas digitais de relevância sistêmica”, independentemente da prática de uma infração ou de qualquer ato de concentração econômica. Essa talvez seja a proposta mais ousada de todo o relatório e que ainda precisa de contornos mais definidos. Alguns pontos dessa proposta merecem destaque. Primeiro, de maneira salutar, a proposta traz mais flexibilidade do que a estratégia utilizada no DMA da União Europeia, evitando uma lista rígida de obrigações autoexecutáveis e aplicáveis a todas as plataformas designadas como de “relevância sistêmica”. Ou seja, caso acolhida a proposta, após a etapa de designação das plataformas relevantes, o Cade deveria definir obrigações substantivas específicas, caso a caso. Porém, ainda não está claro se a proposta sugere ampla discricionariedade do Cade para a imposição de um leque aberto de medidas regulatórias ou se haveria uma delimitação mais precisa das possíveis obrigações comportamentais a serem impostas, baseada em alguma lista pré-definida (algo similar à estrutura do artigo 19(a) da Lei de Defesa de Concorrência alemã). Nesse ponto, parece razoável pensar em alguma delimitação mais precisa das possíveis obrigações, estabelecendo alguns limites ao espaço de discricionariedade da autoridade. Isso pode trazer mais segurança jurídica e previsibilidade, sem uma rigidez excessiva. Ainda sobre este ponto, o relatório traz uma importante sugestão de que, nesse processo regulatório de imposição de obrigações substantivas, a empresa designada possa trazer “defesas de eficiência” e demonstrar que o comportamento questionado é “objetivamente justificado”. Essa ponderação permite uma discussão material sobre a prática objeto de preocupação, antes da imposição de obrigações regulatórias, criando um processo decisório capaz de incorporar a consideração de eficiências benéficas aos usuários. Em terceiro lugar, para aplicação deste novo instrumento regulatório, o relatório propõe uma mudança organizacional, com a criação de uma unidade especializada dentro do Cade. Esse ponto parece fundamental. Como se sabe, a atual estrutura do Cade é voltada para a aplicação da Lei de Defesa da Concorrência, tanto na análise de condutas potencialmente anticompetitivas quanto na análise prévia de atos de concentração econômica. Usar a mesma estrutura institucional para uma atividade de regulação seria um equívoco, pois poderia gerar impactos negativos tanto para a atividade atual do Cade (e.g., atrasando o andamento dos processos) quanto para as novas atividades regulatórias, que dependem de conhecimentos específicos e de uma atenção dedicada. Assim, caso a proposta avance, seria importante que qualquer nova atribuição venha acompanhada da criação dessa unidade especializada e da alocação de pessoal com capacitação específica para essa atividade. Isso poderia ser implementado por meio de uma nova Superintendência de Mercados Digitais dentro do Cade, por exemplo. De qualquer forma, seria recomendável que essa nova unidade especializada continuasse submetendo as suas decisões regulatórias ao Tribunal do Cade. O órgão colegiado deveria ser responsável pela posição final sobre processos de designação de plataformas de “relevância sistêmica”, processos de imposição de obrigações substantivas a essas plataformas e processos de apuração de descumprimento dessas obrigações. A concentração das decisões finais no tribunal traria unicidade para a definição da política de defesa da concorrência e ao mesmo tempo maior ponderação, tendo em vista a participação dos diversos conselheiros, com formações e experiências distintas e complementares. Teria também a vantagem de utilizar o aprendizado decorrente do julgamento de processos de condutas anticompetitivas e de atos de concentração econômica para a nova atividade regulatória, exigindo a manutenção de coerência entre os diferentes tipos de atuação do Cade e a criação de uma cultura de precedentes. Em quarto lugar, há a sugestão de fortalecimento do instrumento de estudos de mercado realizados pelo Cade. Trata-se de medida ainda pouco detalhada no relatório. O Ministério da Fazenda parece estar sinalizando que o Cade deveria se debruçar, espontaneamente ou por provocação de terceiros, de forma ampla, sobre a análise de mercados, independentemente da identificação de posição dominante, de infrações concorrenciais ou de atos de concentração específicos. O Cade já tem feito alguns estudos de mercado (vide, por exemplo, os estudos feitos sobre o mercado de mobilidade urbana e a entrada de aplicativos) e já tem poderes de solicitar informações, no âmbito de sua função de advocacia da concorrência, em que atua para ampliar os espaços de competição (geralmente, mediante a sugestão de medidas a serem adotadas por outros órgãos reguladores, sem compulsoriedade). Portanto, a questão central seria definir quais as consequências efetivas da proposta de ampliação dos poderes da autoridade em estudos de mercado. De acordo como relatório, o Cade poderia sugerir medidas a reguladores setoriais ou tomar as conclusões como base para iniciar processos regulatórios específicos no âmbito da recém-proposta ferramenta pró-competitiva, com foco em plataformas digitais de relevância sistêmica. No entanto, nesse ponto, o relatório também faz referência a jurisdições como Reino Unido e México, onde os estudos de mercado que identificam problemas estruturais podem ensejar a intervenção direta das autoridades concorrenciais, com vistas a alterar o mercado como um todo, com intervenções abrangentes (por exemplo, a autoridade concorrencial do Reino Unido usou esses poderes para reestruturar o mercado de aeroportos na região de Londres). A meu ver, a criação desse tipo de ferramenta de intervenção ampla deve ser precedida de debates mais profundos, que dêem conta de preocupações similares àquelas apontadas acima sobre a amplitude da discricionaridade da autoridade. Finalmente, em quinto lugar, há uma proposta de ampliação da cooperação do Cade com outras agências reguladoras como a ANPD, a Anatel ou o Banco Central. Por mais que o Cade já venha cooperando com essas agências (com maior ou menor grau de sucesso), uma determinação legal adicional poderia ser positiva. Em alguns casos, decisões do Cade têm sido o gatilho para regulações setoriais específicas, como já aconteceu em temas de telecomunicações (e.g. compartilhamento de rede) e de meios de pagamentos (e.g. agendas de recebíveis e aspectos de interoperabilidade). Em outros casos, o Cade tem agido conjuntamente com outras agências, como aconteceu na cooperação com ANPD, Senacon e MPF em relação à política de privacidade do WhatsApp. De uma forma ou de outra, é provável que a adoção de uma visão mais sistemática do Cade sobre aspectos digitais de mercados regulados, somada a uma atuação cooperativa com outras agências, gere impactos positivos. Em suma, o relatório da SRE/MF representa um avanço no debate sobre a regulação de plataformas digitais, que ainda se encontra em estágio inicial no cenário brasileiro. Suas contribuições, tanto em termos de diagnóstico quanto de propostas, ensejam importantes reflexões. A implementação de suas recomendações, entretanto, ainda depende de significativo aprofundamento e de uma transformação das sugestões conceituais em uma proposta normativa concreta. Evitando colocar o carro na frente dos bois, vale reconhecer o mérito do trabalho do Ministério da Fazenda pelo que ele é: não um ponto de chegada, mas um importante pontapé inicial, mais refletido e sofisticado do que tínhamos até agora, mapeando desafios e propondo uma direção para o debate. E isso não é pouco. Mas daqui para frente, os detalhes importam muito. *Caio Mário da Silva Pereira Neto é professor de Direito Econômico da FGV Direito SP. Bacharel em Direito pela USP, mestre (LL.M.) e doutor (JSD) pela Yale Law School. Advogado em São Paulo. NOTAS [1] Ministério da Fazenda, “Plataformas Digitais no Brasil: Fundamentos econômicos, dinâmicas de mercado e promoção da concorrência”. [2] PEREIRA NETO, Caio Mário S.; BELIZARIO, Antonio Bloch; Rethinking the Path to Digital Platform Regulation in Brazil: A Critical Appraisal of DMA-Inspired Bill 2.768/22, Business Law International, Vol. 25, Number 3, September 2024.

Qual é a sua reação?

like

dislike

love

funny

angry

sad

wow