'A liberdade da mulher ainda é cara', diz Marjorie Estiano, intérprete de Ângela Diniz, vítima de feminicídio, em série

Em cartaz com ‘Ainda estou aqui’ e protagonista de outros três filmes, atriz conta que encarnar personagem real dona de seu desejo aguçou sua relação com o próprio prazer, revela característica surpreendente de sua personalidade e conta porque não posta vida pessoal: 'Prezo minha intimidade, não ando com celular na mão, não tenho o hábito de tirar foto' "Ela queria vida livre!”. A frase que o advogado de defesa de Doca Street gritou no julgamento do assassino de Ângela Diniz, socialite mineira vítima de feminicídio em 1976, ainda ecoa na cabeça de Marjorie Estiano. História real. 'Como é ser estuprada e continuar?'; livro narra caso de diretora Dona de si: Escritora revela abuso na infância e aborto em Portugal O fato de uma mulher ser julgada, como se cometesse um crime apenas por ser dona do próprio desejo, desconcerta a atriz, intérprete da protagonista de “Ângela Diniz: o crime da Praia dos Ossos”, série de Andrucha Waddington para o canal HBO e para o streaming MAX, que acaba de ser rodada no Rio e é baseada em podcast da Rádio Novelo. Marjorie conta ao GLOBO como Ângela ampliou sua experiência de ser mulher no mundo, dá detalhes do set de Walter Salles em “Ainda estou aqui”, em que vive a filha mais velha de Eunice Paiva, e comenta sobre filmes que protagoniza (“Abraço de mãe”, na Netflix, “Precisamos falar” e “Enterre seus mortos” ainda inéditos). A artista também divide detalhe desconhecido de sua personalidade discreta, explica porque não posta a vida nas redes e revela que quase todos os seus personagens tem algo em comum: a busca por entender melhor a própria mãe. Marjorie Estiano Leo Aversa Como construiu sua Ângela? Foi a construção mais reveladora e libertadora que já fiz. Compor uma mulher autoconfiante, vaidosa, que se sente bem com seu corpo, sua pele, que goza, que levanta diariamente a bandeira de se dar prazer na vida, ser honesta consigo mesma, com o que fala e pensa, livre e entregue, foi específico e único. Não é comum, não é dado às personagens femininas o prazer. Meu estudo foi na busca de compreender o que é ser mulher, e sendo eu ao mesmo tempo matéria e criador, foi um trabalho profundo. Contei com todas todas as mulheres que conheci e não conheci. A minha psicanalista, minha professora Helena Varvaki (atriz e professora de interpretação) minha mãe, Simone de Beauvoir, Hèléne Cixous, Branca Vianna, Flora Thomson De-Veaux, Mônica Albuquerque, Renata Resende, Elena Soárez, Thais Tavares, Rita Lee, Leila Diniz, Rebeca Diniz, Cibele Santa-Cruz… "O segundo sexo" foi um norte. Busquei artigos, documentários sobre o papel da mulher na sociedade, a luta e conquistas das feministas. Investiguei a cultura da violência contra a mulher. O podcast "Praia dos Ossos" foi uma fonte também. Elena Soárez, roteirista, compartilhou pesquisa para a escrita da série. 'Ainda estou aqui': Fernanda Torres diz que o filme despertou novamente o orgulho nacional Ato feminista: 'Não vou morrer Heloisa Buarque de Hollanda', diz uma das maiores pensadoras do feminismo brasileiro, que abandonou sobrenome do marido A história da Ângela jamais dará conta de representar todas as mulheres e contextos, mas tem algo que serve a todas nós. Foi a personagem que passei mais tempo estudando. Foram sete meses de um processo inesgotável de investigação para a construção e reconstrução de um pensamento, comportamento e seus reflexos físicos também.  Ângela Diniz é minha parceira, é um verbo de ação e um adjetivo, é a potência da mulher.
Me sentia muito acolhida e provocada por essa personagem, como atriz e como mulher. Todo dia era um encontro que me trazia muita alegria, força, que me expandia, que aguçava meus sentidos, minha relação com o prazer. Toda mulher tem uma Ângela Diniz em si, cabe a individualidade de cada uma decidir como vivê-la. Maria Volpe, Marjorie Estiano e Emílio Dantas em cena de "Ângela Diniz: o crime da Praia dos Ossos" Laura Campanella/Divulgação Como foi fazer o trabalho no set? Enquanto estava filmando, pensava: "Nossa, isso aconteceu de verdade". Onde mexeu com você? A frase que o advogado de defesa gritou no primeiro julgamento, como um crime que Ângela tinha cometido, “ela queria vida livre!”, me impacta até hoje. Ângela não foi assassinada  porque era uma mulher sedutora e por isso enlouquecia os homens, mas porque não se submetia a eles, porque destituía esse pseudo poder que o homem acreditava ter, por direito, sobre ela.  E não tendo o poder de controlar e determinar as escolhas dessa mulher, eles "enlouqueciam", eram "acometidos por violenta emoção". O fascínio que uma mulher tão confiante, dona de si, do seu corpo e da sua cabeça exercia sobre homens e outras mulheres que não tinham a ousadia de viver tão livremente, era imenso, e ainda é assim. A liberdade para a mulher ainda é muito cara. Ângela é uma mulher que gosta de conversa, fala o que quer sem medo, gosta de rir, de festas, de gente, de sexo, de beber, fumar, tem o compromisso de se dar prazer, gozar, usufruir de si, da

Nov 17, 2024 - 04:03
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'A liberdade da mulher ainda é cara', diz Marjorie Estiano, intérprete de Ângela Diniz, vítima de feminicídio, em série

Em cartaz com ‘Ainda estou aqui’ e protagonista de outros três filmes, atriz conta que encarnar personagem real dona de seu desejo aguçou sua relação com o próprio prazer, revela característica surpreendente de sua personalidade e conta porque não posta vida pessoal: 'Prezo minha intimidade, não ando com celular na mão, não tenho o hábito de tirar foto' "Ela queria vida livre!”. A frase que o advogado de defesa de Doca Street gritou no julgamento do assassino de Ângela Diniz, socialite mineira vítima de feminicídio em 1976, ainda ecoa na cabeça de Marjorie Estiano. História real. 'Como é ser estuprada e continuar?'; livro narra caso de diretora Dona de si: Escritora revela abuso na infância e aborto em Portugal O fato de uma mulher ser julgada, como se cometesse um crime apenas por ser dona do próprio desejo, desconcerta a atriz, intérprete da protagonista de “Ângela Diniz: o crime da Praia dos Ossos”, série de Andrucha Waddington para o canal HBO e para o streaming MAX, que acaba de ser rodada no Rio e é baseada em podcast da Rádio Novelo. Marjorie conta ao GLOBO como Ângela ampliou sua experiência de ser mulher no mundo, dá detalhes do set de Walter Salles em “Ainda estou aqui”, em que vive a filha mais velha de Eunice Paiva, e comenta sobre filmes que protagoniza (“Abraço de mãe”, na Netflix, “Precisamos falar” e “Enterre seus mortos” ainda inéditos). A artista também divide detalhe desconhecido de sua personalidade discreta, explica porque não posta a vida nas redes e revela que quase todos os seus personagens tem algo em comum: a busca por entender melhor a própria mãe. Marjorie Estiano Leo Aversa Como construiu sua Ângela? Foi a construção mais reveladora e libertadora que já fiz. Compor uma mulher autoconfiante, vaidosa, que se sente bem com seu corpo, sua pele, que goza, que levanta diariamente a bandeira de se dar prazer na vida, ser honesta consigo mesma, com o que fala e pensa, livre e entregue, foi específico e único. Não é comum, não é dado às personagens femininas o prazer. Meu estudo foi na busca de compreender o que é ser mulher, e sendo eu ao mesmo tempo matéria e criador, foi um trabalho profundo. Contei com todas todas as mulheres que conheci e não conheci. A minha psicanalista, minha professora Helena Varvaki (atriz e professora de interpretação) minha mãe, Simone de Beauvoir, Hèléne Cixous, Branca Vianna, Flora Thomson De-Veaux, Mônica Albuquerque, Renata Resende, Elena Soárez, Thais Tavares, Rita Lee, Leila Diniz, Rebeca Diniz, Cibele Santa-Cruz… "O segundo sexo" foi um norte. Busquei artigos, documentários sobre o papel da mulher na sociedade, a luta e conquistas das feministas. Investiguei a cultura da violência contra a mulher. O podcast "Praia dos Ossos" foi uma fonte também. Elena Soárez, roteirista, compartilhou pesquisa para a escrita da série. 'Ainda estou aqui': Fernanda Torres diz que o filme despertou novamente o orgulho nacional Ato feminista: 'Não vou morrer Heloisa Buarque de Hollanda', diz uma das maiores pensadoras do feminismo brasileiro, que abandonou sobrenome do marido A história da Ângela jamais dará conta de representar todas as mulheres e contextos, mas tem algo que serve a todas nós. Foi a personagem que passei mais tempo estudando. Foram sete meses de um processo inesgotável de investigação para a construção e reconstrução de um pensamento, comportamento e seus reflexos físicos também.  Ângela Diniz é minha parceira, é um verbo de ação e um adjetivo, é a potência da mulher.
Me sentia muito acolhida e provocada por essa personagem, como atriz e como mulher. Todo dia era um encontro que me trazia muita alegria, força, que me expandia, que aguçava meus sentidos, minha relação com o prazer. Toda mulher tem uma Ângela Diniz em si, cabe a individualidade de cada uma decidir como vivê-la. Maria Volpe, Marjorie Estiano e Emílio Dantas em cena de "Ângela Diniz: o crime da Praia dos Ossos" Laura Campanella/Divulgação Como foi fazer o trabalho no set? Enquanto estava filmando, pensava: "Nossa, isso aconteceu de verdade". Onde mexeu com você? A frase que o advogado de defesa gritou no primeiro julgamento, como um crime que Ângela tinha cometido, “ela queria vida livre!”, me impacta até hoje. Ângela não foi assassinada  porque era uma mulher sedutora e por isso enlouquecia os homens, mas porque não se submetia a eles, porque destituía esse pseudo poder que o homem acreditava ter, por direito, sobre ela.  E não tendo o poder de controlar e determinar as escolhas dessa mulher, eles "enlouqueciam", eram "acometidos por violenta emoção". O fascínio que uma mulher tão confiante, dona de si, do seu corpo e da sua cabeça exercia sobre homens e outras mulheres que não tinham a ousadia de viver tão livremente, era imenso, e ainda é assim. A liberdade para a mulher ainda é muito cara. Ângela é uma mulher que gosta de conversa, fala o que quer sem medo, gosta de rir, de festas, de gente, de sexo, de beber, fumar, tem o compromisso de se dar prazer, gozar, usufruir de si, da vida. Gosta de ser vista, e a partir disso a sociedade determinou a categoria de mulher que ela ocuparia. Viveu desde a separação do primeiro marido numa luta constante para conseguir a guarda da filha, que os advogados - o dela inclusive - e juízes, negavam a uma mulher da categoria dela. Era uma figura de quem a filha deveria ser protegida.  Ao longo do arco da narrativa dessa mulher que tem esse pensamento sobre si e independente financeiramente, que se separa com o desejo de ser livre e viver mais do que aquele casamento apresentava a ela, vão sendo apresentados uma série de impedimentos e violências que ela não dimensionava, nem sabia que existiam, mas não recuou em nenhum momento até o assassinato. E é assim até hoje. Precisamos atualizar nossos desejos, nossos princípios, nossa compreensão sobre nós mesmos e sobre o mundo, ao invés de reproduzir padrões e frases que perderam o sentido. É urgente atualizar nossa visão de mundo que felizmente teima em andar para frente independente daqueles que se sentem mais seguros e confortáveis vivendo no passado, ameaçados pela mudança ou que assumidamente não tem interesse em fazer nenhum esforço para mudar algo que os favorece. Alice Braga: 'Me sentia pressionada a dizer se era bi, gay ou hétero quando nem eu sabia' Zélia Duncan: 'Não tenho filho, tenho violão' O que era fundamental imprimir na tela?  Pulsão de vida, habilidade enorme em usufruir de si, dos momentos, de tudo… Tesão em estar com os amigos, com a filha, no sexo… Uma mulher que se alimenta da interação, que se sente provocada pelos impedimentos, que não recua. Era importante que não corresse o risco de objetificar. A visão idealizada e objetificada não poderia ser desserviço maior à narrativa, porque essa foi justamente criada através do olhar do homem e para usufruto dele mesmo. É mais uma manifestação do papel que é atribuído a mulher. Ângela é, principalmente, um jeito de se colocar no mundo. É um dos mais escabrosos casos de feminicídio no Brasil, o assassino ainda alegou "defesa da honra"... Muitos aspectos me impactaram e continuam impactando após o término das filmagens, por exemplo, falar sobre um assunto ao mesmo tempo que vivê-lo. A dimensão da violência a qual a mulher é submetida nesse sistema. São tantas que não consigo imaginar quem nós seríamos se não fôssemos criadas a partir desses conceitos. A lentidão na transformação individual e coletivamente. A profundidade dessa construção, digo a construção dessa mulher criada no nosso contexto. Somos todos forjados sob essa lógica, e a desconstrução desse modo de pensar é um processo contínuo que demanda entre outras coisas atenção, investimento, questionamento, resignação no sentido de reconhecer que vamos escorregar, homens e mulheres, vamos ser surpreendidos com pensamentos ou comportamentos dessa natureza, não é o caso de negar, mas de olhar para isso e corrigir. “A sociedade é um organismo vivo, que se transforma ao longo dos anos e precisa constantemente se atualizar.” Ouvi essa definição através da brilhante Débora Falabella, na peça "Prima Facie", escrita por Suzie Miller, que fala sobre a violência contra a mulher e o papel da justiça. As leis não asseguram mudança absoluta, é claro que se trata de uma transformação em todas as faces da sociedade, mas elas regem, regulam uma base de direitos e esses são determinados por nós que compomos a sociedade, ou melhor dizendo, por quem está no poder. No caso dos direitos das mulheres, ainda se faz necessária e urgente a discussão por conta do impacto diário e mundial com consequências gravíssimas. E não me refiro apenas a gravidade extremada de um assassinato, mas também da deformação e atrofiamento de mulheres e homens que não crescem para a sociedade. Ou seja, impacta no crescimento e avanço da própria sociedade, em razão de uma herança que já não vale nada. A cultura da violência contra a mulher é herança. Acredito no papel e poder da narrativa como impulso para questionamentos, reflexões e transformações, e a história da Ângela nos traz com o recorte do tempo, um espelho da cultura que avança por um lado, mas que permanece matando mulheres todos os dias. Quando uma obra pode contribuir para uma possibilidade de deslocamento de pensamento, de serviço público e direto, nos sentimos ainda mais engajados e implicados. É a história da Ângela mas é também a de milhares de outras mulheres no mundo todo. Seguimos vivendo com medo de homem, preocupadas ao andar sozinha à noite, em levar um casaco para andar em um carro de aplicativo... É diariamente, pensando na roupa, na hora que vamos voltar... Mas temos conseguido falar mais sobre isso, o Mee Too... É um avanço ter um preparador de cenas íntimas, figura para garantir o profissionalismo daquele espaço. Principalmente, para proteger a mulher. Esse lugar de "sim" e "não" é subjetivo, é difícil ter uma pessoa isenta para avaliar. Muitos elementos envolvem o "não é não", podem estar empurrando esse "não me incomoda". Nas filmagens de "Fim", tivemos um. Perguntaram para todo o elenco se achava necessário ter esse profissional. Todas as mulheres falaram que sim, todos os homens falaram que não precisavam. Marjorie Estiano viverá Ângela Diniz em longa Divulgação/TV Globo e Reprodução Sintomas... O assédio é sempre em cima da mulher, nós estamos mais vulneráveis, normalmente. Não estou dizendo que atores estavam ali para assediar, é só sobre o pensamento mesmo: eles se sentem seguros de fazer uma cena de sexo, quem não se sente são as mulheres. Já sofreu assédio? Sofri assédio na adolescência, adulta... É uma realidade na vida de uma mulher. Marjorie Estiano Leo Aversa "Guardo o humor para ter mistério, tipo 'nossa você é uma surpresa'" Você tem uma grande intensidade dramática nos mínimos detalhes. Os conflitos dos personagens que explora, não são, necessariamente, os de uma vilã. Mesmo nas mocinhas, pega nos defeitos, nas contradições. É uma busca constante? A contradição é o elemento mais instigante do ser humano. Não somos bons ou maus, somos tudo. Tirando as psicopatias, questões da ordem do distúrbio mesmo, o resto é contradição. É isso que faz a gente se reconhecer, se conectar. Somos herói e bandido ao mesmo tempo. Para mim, não interessa ficar só elogiando, enaltecendo as qualidades e negando os defeitos do personagem. Isso idealiza. E distancia... Podemos nos inspirar nas qualidades e se reconhecer nos defeitos, isso facilita o entendimento de si e não uma segregação tipo: "Ah, disso não vou me aproximar porque é do mundo dos maus e eu pertenço a gente de bem". Aliás, defina gente de bem... Aproximar, é o que faz "Ainda estou aqui", não é? O que esse filme te trouxe? Um resgate da história do país que só tinha passado na escola. Os crimes da ditadura são de um impacto perpétuo, permanente. E ainda se volta a flertar com isso... Daí a importância de voltar a falar sobre e com a intimidade que o cinema traz. O dia a dia daquelas pessoas, a violência que sofreram e o impacto na vida delas dão chance de compreender por outro canal. Quando é número, estatística fica meio bruto, passa batido. Quando é a história de cada um, a chance de se abrir para compreender de forma mais sensível e empática é maior. Se a gente não resgata o que viveu não só historicamente e politicamente, mas pessoalmente, não tem chance de deslocamento. Fica estagnado num lugar que, às vezes, acha que para superar é só ir adiante, não tocar no assunto. Mas aquilo volta. Essa ideia de que a ditadura foi boa para o país acabou voltando. Não só no Brasil, mas no mundo inteiro tem se flertado com a ideia do autoritarismo enquanto algo saudável para a sociedade. Na última cena do longa, você a filha mais velha de Eunice Paiva, Eliana, que passou por um trauma muito grande... Eliana foi presa junto com a mãe. Não perdeu só o pai. Se separou da família inteira, ficou isolada naquela experiência. Foi uma cisão. Vi uma entrevista dela na inauguração do Museu da Resistência, em São Paulo, que conta a história da ditadura, dos presos. Disse que cada um da família tinha vivido o luto, o encerramento da história do pai em momentos distintos. E que tinha conseguido entender a história dela naquela inauguração do museu. A força da narrativa enquanto processo analítico, psicanalítico, de se conseguir passar pelo que viveu, é forte demais. Como foi a experiência no set? Nunca tinha vivido uma filmagem com tanto tempo e disponibilidade para aquela cena de que participo. Geralmente, é um processo atropelado pela pressão do tempo, de cumprir plano de filmagem. Com Walter, era todo o tempo do mundo para aquele momento. Trabalhar com ele era um sonho. Todo mundo conhece a profundidade, a delicadeza do cinema que realiza. Com Fernanda Torres e Montenegro também. Era um set atencioso, delicado e muito silencioso. Walter não fala com você do monitor, ele chega perto. Ele entregou um material extenso de pesquisa. Normalmente, é o ator que se encarrega disso. Selton Mello também é um parceiro recorrente seu. E ele revelou publicamente, em um programa de TV, que se apaixonou por você nas gravações da série "Ligações perigosas". Soube disso na época? Ele me disso isso no programa, eu não soube na época. Mas o Selton é assim. Trabalhei com ele duas vezes, e a sensação é que o conheço muito. A gente é brother. É humano, acessível, complexo, contraditório, honesto. É muito bom trabalhar com pessoas que você admira. "Enterre seus mortos" ilustra o fanatismo religioso; "Precisamos falar" escancara o que há de pior numa elite brasileira egoísta, que acoberta um crime do filho e é altamente preconceituosa. São temas bem atuais do nosso país né? 'Enterre..." mostra um mundo distópico, com cada um tentando sobreviver à sua maneira num abandono absoluto do Estado. Cada um se agarra ao que pode para conseguir escapar. "Precisamos..." é sobre esse mundo polarizado e a necessidade de um diálogo mundialmente urgente. Não se entra mais em negociação. Além da falta de diálogo, vivemos uma crise de caráter, não? Estudei sobre pessoas que pensam daquela forma (como os protagonistas de "Precisamos falar"), tem esses valores. É chocante a visão autorreferente, individualista, autocentrada, meritocrata, que desconsidera a coletividade. E não há nenhum pudor em se reconhecerem dessa forma. O que é uma contradição curiosa. "Sou eu, interessa eu, minha família, as pessoas que amo e zero empatia em relação ao mundo". Tudo que é diferente da regra e valores deles tem que ser excluído, é completamente desconsiderado, atrapalha. Essa relação de se colocar no lugar do outro não existe. Pesquisou pessoas reais para esse trabalho? Pesquisei perfis, pessoas públicas. A internet dá esse acervo jornalístico e pessoal. As pessoas postam seus pensamentos, seus ideais. Tem coaches que criam seus canais para difundir uma verdade, um Brasil paralelo que se dedica a conservar esse tipo de perspectiva. "Enterre seus mortos" e "Abraço de mãe" exploram elementos fantásticos que tem sido comuns em muitos filmes brasileiros atuais, né? No audiovisual, o terror tem flertado com a fantasia, que é um lugar de liberdade absoluta. É democrático no sentido de não ter certo e errado. Pertence a uma lógica que não é a convencional, que costuma limitar mais as possibilidades de interpretação, fica em cima de fatos, da racionalidade. O fantástico, te permite identificar símbolos que estão impressos naquela narrativa e criar a sua interpretação. "Enterre..." e "Abraço de mãe" são obras mais livres. Tanto de criação quanto de interpretação no sentido do papel do espectador. Para mim, é fundamental, preciso me renovar. É importante ir para um lugar que me permita outro canal de criação. A gente acaba se viciando em caminhos de raciocínio que eles acabam se repetindo. É importante dar uma desorganizada, uma bagunçada nisso. Dizem que você seu processo de criação é muito meticuloso. De onde parte? De muito estudo. O início é o roteiro, aí vejo quais as necessidades daquele personagem, os temas, o ar do mundo daquele projeto. Histórico, político... Então, investigo inspirações de vida real, pinturas, música. São muitos elementos. Um dos privilégios da minha profissão é poder investigar esses micro- universos, sair da minha bolha. Me amplia, me enriquece, me desperta para coisas na minha vida e na minha relação com o coletivo. Trabalho com a Helena Varvaki desde que me mudei para o Rio. Foi ela que me ensinou o que sei sobre atuação. É um processo de formação permanente. Mas esse sua característica meticulosa vem da sua criação, em Curitiba? Fui criada numa família que acredita que conquista precisa do esforço, que a vida é dura. Meu pai era comerciante, minha mãe, hoje é terapeuta. Minha irmã dá aula de pilates, meu irmão trabalha com telemarketing e vende brigadeiro. Ninguém era da arte. Só meu avô era poeta. Era uma família que consumia muita música e gostava de gente. Mas disciplina, compromisso com o outro e com o que se está envolvido foram os principais legados dos meus pais. Comprometimento foi fundamental no meu amadurecimento, no meu crescimento como atriz. Está ligado com o estudar, aprimorar meus recursos, meu instrumentos. Quero oferecer com profundidade, com amparo, com embasamento. Até tenho curiosidade por atores que são puramente intuitivos (risos). Mas aí teve uma hora que disse aos seus pais: "Vou ser atriz, beeijo"? Desde criança eu falava "beijo" (risos). Dizia à minha mãe: "Me aproveita, porque daqui a pouco tô indo embora". Eu tinha certeza que seria artista. Com 14 anos falei isso para valer. Com 18, fui para São Paulo dividir apartamento com uma colega de escola. Fiquei dois anos, vim para o rio fazer oficina de atores da GLOBO, emendei um trabalho no outro. Já te vi dizer que a doutora Carolina, personagem que viveu por anos em "Sob pressão" e te rendeu prêmios, mudou sua forma de ver a sua profissão e o Brasil? Completamente. Primeiro porque tinha o Andrucha (Waddington, diretor), e a relação dele com a equipe. Era um processo totalmente cinematográfico e novo para mim que vinha de uma emissora de TV. A coisa do serviço público, da saúde, o impacto direto no espectador, me fez ter a dimensão do poder de instrução que podemos exercer aplicado diretamente na vida das pessoas. Todo episódio tinha uma cartela de orientação de serviço público, um telefone para ligar, um esclarecimento concreto em relação à saúde daquelas pessoas. É sobre direitos básicos, atravessado pelas nossas questões sociais e culturais. Teve um luto ou a sensação foi de missão cumprida ao se despedir de uma personagem que encarnou por tanto tempo? Uma mistura. Tinha um esgotamento emocional grande. Mas fica um vazio. Todo o personagem tem a despedida, largar a mão, entregar para receber outros. Então, veio a Ruth, da série "Fim", baseada no livro homônimo e dirigida por Fernanda Torres. Uma personagem luminosa, que perde o brilho diante da dificuldade em ter um filho e da ruína de seu casamento... Todo personagem que posso tento usar para entender um pouco melhor a minha mãe. É um universo que me instiga a relação com a maternidade. E Ruth me instigou muito por ser de uma geração próxima à minha mãe, pertencer àquele mesmo universo em que mulheres são sobrecarregadas, não têm muita perspectiva, em que tudo é cerceado a elas. O destino da vida da mulher era ter um casamento. Filhos é uma extensão natural e não escolha. A realidade da época era dura para as mulheres, não é incomum ver mulheres da geração da Ruth terem tido um único homem na vida. Não se autorizavam tanto a sair, a explorar, se questionar, não eram dadas aos impulsos. Na sociedade machista, para ele (o marido, vivido por Fabio Assunção), também era pesado não poder ter filho... Era o fracasso da masculinidade. Estudar a história da mulher no Brasil, no mundo, esse deslocamento já nessa fase da minha vida me fez entender. Sair com mais propriedade do lugar de filha e compreender ela como um ser separado de mim, como uma mulher. A cada personagem, admiro e agradeço mais a minha mãe. É um símbolo de força, de resiliência para mim. Se formou com uns 40 e começou a trabalhar. Antes, trabalhava no comércio com o meu pai. Aí, teve um momento em que falou: "Chega, vou fazer o que eu gosto". Nesses tempos em que se expõe até o sexo do bebê nas redes, sexo do filho, você destoa com rara discrição, não posta nada de vida pessoal... Tem a ver com temperamento, sou mais reservada mesmo. Também é a condução de carreira. Os trabalhos que faço, personagens que desenvolvo e dialogar sobre esses temas é muito mais interessante do que falar sobre com quem estou namorando. Prezo minha intimidade. Até falar da minha mãe aqui, com você, me deixa atenta para não a expor... Não tenho consentimento dela, entende? Envolve muita coisa, né? Não tenho nem o hábito de tirar foto. Tenho registros porque os outros tiram. Não vivo com o celular mão, tenho uma relação com as redes mais de voyeur. Acho interessante ver como uma pessoa vive no campo. Entrar na vida de algumas pessoas me interessa enquanto espectadora, mas não como criadora de conteúdo. Também é um lugar de pesquisa de mundos. Minha pesquisa sobre câncer de mama para a Carolina foi toda digital. Mulheres dividiam suas experiências com o desejo de amparo, de se reconhecer numa rede. Isso é usar as redes com propósito... Não julgo quem sem expõe, cada um usa essas ferramentas como quiser. Mas a gente pode banalizar, né? Ser só o lugar de: "Agora, tô indo malhar"... Acredito nesse compartilhamento como oportunidade de reconhecer outras pessoas que podem te auxiliar em alguma etapa da vida. Mas como é a Marjorie que ninguém conhece? Percebo um certo humor que parece aflorar só na intimidade... É, guardo o humor para ter um mistério, tipo: "Nossa, você é uma surpresa" (risos). O humor é salvador, né? Vem da minha família. Meu pai era um piadista, o humor sempre me acompanha. A capacidade de ver o ridículo, o engraçado nas situações, é um refresco. Não se levar tão a sério, poder rir de si mesma. Rir é uma manifestação de liberação.

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