Sebastião Salgado, o tradutor fotográfico dos invisíveis

A obra do brasileiro dispara a esperança de que possamos melhorar e não repetir erros e crimes Atravessamos tempos em que evocar os órfãos de justiça denota anomalia e com eles simpatizar, uma temeridade. A exclusão social, étnica e ecológica mostra-se particularmente perversa ao fomentar o erguimento de barreiras. Se as vítimas forem pobres e párias, o distanciamento aumenta, destino similar ao reservado a expressões da natureza consideradas inimigas do crescimento econômico a qualquer preço. Ivan Lins: Erro em nome de cantor durante Grammy Latino gera críticas nas redes sociais Regulação no streaming: Profissionais do cinema criticam atual gestão do MinC e pedem ação urgente a Lula Não espanta, pois, que, na guerra e na paz, os vulneráveis — humanos e não humanos — possam até gritar, mas seus apelos esvaecem no obscurantismo, menosprezo, quando não na escancarada repulsa de parcela da sociedade. Na plateia dos horrores do mundo, contam-se um ou outro pronto para ouvir e se apiedar, raros os animados a denunciar, só uma minoria disposta a (re)agir. Em face de tamanhas muralhas, a fartura de ofensas diárias requer intérpretes que quebrem a solidão dos oprimidos. Sem esses sinalizadores, a ignorância correrá solta e, a partir dela, a indiferença dos que não percebem, não querem perceber ou temem perceber. O segredo desse tipo de mediação não se resume a instinto bruto e mecânico de elucidar e enfatizar o que temos de pior ou de melhor: atrela-se a firme intento de desobstruir as janelas do coração e, em seguida, intimar a solidariedade na e com a comunidade da vida. Fotografias que falam O fotojornalismo é veículo por excelência de tradução da invisibilidade dos espoliados, sobretudo pela sua virtude de perenidade, tênue em outros ofícios. Por exemplo, aos notáveis oradores não falta força retórica para apontar o dedo contra iniquidades e assim aguçar paixões e multidões. Comportam-se como artífices de palavras, mas palavras se perdem ao vento. O baú do fotógrafo talentoso, não. Uma vez aberto, brilha no presente e se estende no futuro, embora originado no passado. Uma autonomia inata, que arranca a criação de seu criador, ainda habilitado a deserdá-la, mas impotente para apagá-la do livro das memórias. O sopro de fotografias instiga milagres, ao estimular a empatia mais profunda diante de tragédias das pessoas e da biosfera. Ou, no extremo oposto, o acordar para o sublime dos encantos do humano e do natural. Com frequência, ocorre de genialidade de composições comover os imperturbáveis, tirando-os, por um momento que seja, da zona de conforto ou da apatia do cotidiano. Nesse efeito despertador, devemos louvar os fotógrafos que contam a nossa história e a do pequeno planeta azul. Filha da oportunidade, precisão, luminosidade e ângulo, a arte desses operários do olhar aparenta enganosa inocuidade, equívoco em que caem os inaptos para assimilar a carga de emoção entalhada na imagem. Censurá-los pelo uso da técnica e da inspiração como ferramenta para desvendar os territórios do encoberto ou negligenciado? Não, se compelidos a repreender alguém, que direcionemos a condenação a nós mesmos, como humanidade, grupo ou indivíduo, os genuínos causadores de dramas da existência. Nada mais errado e injusto, por conseguinte, do que imputar culpa ao fotógrafo que armazena a realidade, o mensageiro íntegro da notícia visual. A impressão que fica é de combate ao (efetivo) silêncio dos fatos com o (suposto) silêncio da fotografia. No fundo, queira ou não o fotógrafo, estamos diante de estética de aclaramento e lembrança, que nos abala e aproxima das nossas referências mais profundas — sagradas, familiares, a alma coletiva. Esses esforços redundam da crença na viabilidade de superar a desigualdade abusiva que, no plano dos sentimentos, demarca uma reserva de mercado da dor para a maioria e o Jardim do Éden para a minoria, a elite delinquente. Na introdução do livro 'Êxodos', Sebastião Salgado escreve: “Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes. Pessoa fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas...” Sebastião Salgado Não abdicar da crítica social, étnica e ambiental serve de métrica para qualificar os tradutores oculares dos vulneráveis. Nesse universo, Sebastião Salgado é um gigante entre os que, pela fotografia, estampam e descortinam o sujeito ou o objeto — lindo ou feio, alegre ou triste, otimista ou depressivo. Ele e sua obra se posicionam ao inverso do fotojornalismo perfumado, típico dos porta-vozes de um certo supremacismo da prosperidade e do glamour, hábil na crônica das mais recentes proezas dos opressores, das suas folias e extravagâncias e, simultaneamente, alérgico à aproximação ou, pior, à intimidade com as necessidades primárias dos riscados do mapa. Arte de libertação E

Nov 17, 2024 - 09:24
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Sebastião Salgado, o tradutor fotográfico dos invisíveis

A obra do brasileiro dispara a esperança de que possamos melhorar e não repetir erros e crimes Atravessamos tempos em que evocar os órfãos de justiça denota anomalia e com eles simpatizar, uma temeridade. A exclusão social, étnica e ecológica mostra-se particularmente perversa ao fomentar o erguimento de barreiras. Se as vítimas forem pobres e párias, o distanciamento aumenta, destino similar ao reservado a expressões da natureza consideradas inimigas do crescimento econômico a qualquer preço. Ivan Lins: Erro em nome de cantor durante Grammy Latino gera críticas nas redes sociais Regulação no streaming: Profissionais do cinema criticam atual gestão do MinC e pedem ação urgente a Lula Não espanta, pois, que, na guerra e na paz, os vulneráveis — humanos e não humanos — possam até gritar, mas seus apelos esvaecem no obscurantismo, menosprezo, quando não na escancarada repulsa de parcela da sociedade. Na plateia dos horrores do mundo, contam-se um ou outro pronto para ouvir e se apiedar, raros os animados a denunciar, só uma minoria disposta a (re)agir. Em face de tamanhas muralhas, a fartura de ofensas diárias requer intérpretes que quebrem a solidão dos oprimidos. Sem esses sinalizadores, a ignorância correrá solta e, a partir dela, a indiferença dos que não percebem, não querem perceber ou temem perceber. O segredo desse tipo de mediação não se resume a instinto bruto e mecânico de elucidar e enfatizar o que temos de pior ou de melhor: atrela-se a firme intento de desobstruir as janelas do coração e, em seguida, intimar a solidariedade na e com a comunidade da vida. Fotografias que falam O fotojornalismo é veículo por excelência de tradução da invisibilidade dos espoliados, sobretudo pela sua virtude de perenidade, tênue em outros ofícios. Por exemplo, aos notáveis oradores não falta força retórica para apontar o dedo contra iniquidades e assim aguçar paixões e multidões. Comportam-se como artífices de palavras, mas palavras se perdem ao vento. O baú do fotógrafo talentoso, não. Uma vez aberto, brilha no presente e se estende no futuro, embora originado no passado. Uma autonomia inata, que arranca a criação de seu criador, ainda habilitado a deserdá-la, mas impotente para apagá-la do livro das memórias. O sopro de fotografias instiga milagres, ao estimular a empatia mais profunda diante de tragédias das pessoas e da biosfera. Ou, no extremo oposto, o acordar para o sublime dos encantos do humano e do natural. Com frequência, ocorre de genialidade de composições comover os imperturbáveis, tirando-os, por um momento que seja, da zona de conforto ou da apatia do cotidiano. Nesse efeito despertador, devemos louvar os fotógrafos que contam a nossa história e a do pequeno planeta azul. Filha da oportunidade, precisão, luminosidade e ângulo, a arte desses operários do olhar aparenta enganosa inocuidade, equívoco em que caem os inaptos para assimilar a carga de emoção entalhada na imagem. Censurá-los pelo uso da técnica e da inspiração como ferramenta para desvendar os territórios do encoberto ou negligenciado? Não, se compelidos a repreender alguém, que direcionemos a condenação a nós mesmos, como humanidade, grupo ou indivíduo, os genuínos causadores de dramas da existência. Nada mais errado e injusto, por conseguinte, do que imputar culpa ao fotógrafo que armazena a realidade, o mensageiro íntegro da notícia visual. A impressão que fica é de combate ao (efetivo) silêncio dos fatos com o (suposto) silêncio da fotografia. No fundo, queira ou não o fotógrafo, estamos diante de estética de aclaramento e lembrança, que nos abala e aproxima das nossas referências mais profundas — sagradas, familiares, a alma coletiva. Esses esforços redundam da crença na viabilidade de superar a desigualdade abusiva que, no plano dos sentimentos, demarca uma reserva de mercado da dor para a maioria e o Jardim do Éden para a minoria, a elite delinquente. Na introdução do livro 'Êxodos', Sebastião Salgado escreve: “Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes. Pessoa fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas...” Sebastião Salgado Não abdicar da crítica social, étnica e ambiental serve de métrica para qualificar os tradutores oculares dos vulneráveis. Nesse universo, Sebastião Salgado é um gigante entre os que, pela fotografia, estampam e descortinam o sujeito ou o objeto — lindo ou feio, alegre ou triste, otimista ou depressivo. Ele e sua obra se posicionam ao inverso do fotojornalismo perfumado, típico dos porta-vozes de um certo supremacismo da prosperidade e do glamour, hábil na crônica das mais recentes proezas dos opressores, das suas folias e extravagâncias e, simultaneamente, alérgico à aproximação ou, pior, à intimidade com as necessidades primárias dos riscados do mapa. Arte de libertação Em “Êxodos”, “Gênesis”, “Amazônia” e tantas outras coletâneas, Salgado se irmana com o doloroso e o trágico — mas também com o mais perfeito, divino e inescrutável — dos humanos e da biosfera. Cada clique dispara uma fagulha de esperança de que possamos constatar e unir os pontos para melhorar e não repetir erros e crimes. É gravação que, ao romper o vício do calar e o cativeiro da incivilidade, transporta forte vínculo com a realidade. Amálgama irradiadora de uma espécie de delírio absurdo, a fotografia por geração espontânea, diante da qual, por instantes, esquecemos que o fotógrafo lá esteve. A lente de Salgado desnuda a vida, não deseja inventá-la, distorcê-la ou fantasiá-la. A apreensão não encerra prazer com a desgraça do próximo ou com a fragilidade da Natureza e dos povos indígenas. Tampouco idolatra o pessimismo, o culto frio do padecimento e da infâmia. É narrativa do factual, manuseando chave documental para circular entre inferno e paraíso, entre terra, mar e céu, aqui e agora. Captura o que anda perambulando como entidade incógnita. A fotografia-manifesto instiga o grande público, com sua plástica contagiante, dotada de beleza da verdade, verdade sem retoques, com o dom de constranger o alheamento e alforriar da insensatez. Pela via do fotojornalismo e do interesse artístico suscitado, Salgado trafega pelo labirinto da arte de libertação. O programa não deixa de ser ambicioso: emancipar os miseráveis, a biosfera e nós todos, usando, simplesmente, o ver e o saber como alavanca para o discernimento. O fotógrafo Sebastião Salgado Divulgação/CASACOR Por isso, em vez de assenhoreamento da angústia de terceiros e do esplendor de pessoas e do planeta, o que temos mesmo na fotografia de Salgado é solidarismo puro, que almeja o florescimento sincrônico. O objetivo primário não é chocar sensibilidades delicadas, mas tocar as entranhas empedernidas dos cegos involuntários ou por opção. Uma trajetória dedicada à busca contínua por fazer aflorar o que insistimos em preterir e negar define Sebastião Salgado. Há algo de maravilhoso na complexidade desses profissionais, envolvidos em uma cruzada eterna: tenacidade de avançar desobedecendo a prudência; cuidado ao invadir o espaço e os enigmas privados sem ser invasivo; renúncia e sacrifício pessoais; coragem para ir onde amiúde não é convidado ou bem-vindo; soledade e abandono de si para projetar o outro; espalhamento de vigorosos recados sem fala ou ruído. Vocação irrefreável Sebastião Salgado integra uma classe prodigiosa de fotógrafos que, quase possuídos, se vão, sem ideia exata para onde vão e se voltarão, que largam para trás suas Lélias, Julianos e Rodrigos, sem nunca os perder no pensamento. Trata-se de uma gente para quem a família se confunde com os continentes e o propósito altruísta não se guia pelo sangue, tribo ou nação. Sob vocação irrefreável e domínio do dever, prestam serviço e respondem à Humanidade. Encarnar a consciência do mundo é a maior evidência de generosidade dos fotojornalistas-artistas que não pegam em armas; limitam-se, em gestos simbólicos, a pôr o foco em dinâmicas e figuras marginais. Festejemos os 80 anos que Sebastião Salgado fez em 2024. Celebremos, conjunta e equitativamente, Lélia Wanick Salgado. Sem ela, essas décadas empalideceriam naquilo que mais reúnem de intensidade e harmonia. Faltaria o destemor do afeto magnânimo, capaz de empurrar o amado para longe, na conquista de sonhos incontroláveis. Nem a fotografia teria emergido, não fosse aquela primeira Pentax Spotmatic II comprada por Lélia. O mais relevante, porém, é que ausente o companheirismo e o labor amalgamado desses dois corpos, que formam um só espírito, jamais a pequena Aimorés e o Brasil virariam sinônimo de educação pela luz e pelo retrato dos apagados. Antonio Herman Benjamin é ministro do Superior Tribunal de Justiça

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