Proibido por Putin: chega ao Brasil livro russo sobre paixão gay que gerou lei anti-LGBTQIAP+ e levou autoras ao exílio
Lançado agora no país, ‘Verão de lenço vermelho’ virou fenômeno editorial na Rússia: 'Demonizar a homossexualidade é uma necessidade política’, diz escritoras A princípio, o romance “Verão de lenço vermelho”, lançado agora no Brasil pela Seguinte, não causaria espanto na estante de livros Young Adult: trata-se de uma história de amor entre dois rapazes que tem como charme de se passar na União Soviética dos anos 1980. Seu êxito, porém, gerou uma das maiores reações conservadoras dos últimos anos no mundo literário. Leia também: Pesquisa da Flup mapeia hábitos de leitura nas periferias do Rio e aponta 'demanda reprimida' por livros Crítica: Em 'Tédio terminal', cultuada autora de ficção científica dos anos 1980 antecipa estagnação social do Japão Escrita pela russa Elena Malíssova e pela ucraniana Katerina Silvánova em 2016, a narrativa surgiu de forma discreta, em uma plataforma on-line. Nos quatro anos seguintes, o texto viralizou nas redes, inspirou jovens artistas e foi transformado em livro físico, vendendo mais de 200 mil cópias em menos de seis meses. O sucesso despertou a repressão do governo russo e a fúria de ativistas anti-LGBTQIAP+, que chegaram a lançar uma campanha para banir o romance. As escritoras Elena Malisova e Katerina Silvanova Ira Guzova /Diana Kokhna/ Divulgação Resultado: as autoras sofreram ameaças de morte e deixaram a Rússia — Elena, rumo à Alemanha, e Katerina de volta para a Ucrânia (em entrevista ao jornal Vanguardia, de Barcelona, ela disse: “mesmo com a guerra, me sinto mais segura aqui”). Enquanto isso, o regime de Putin usou a repercussão do livro como pretexto para aprovar, no fim de 2022, uma lei que proíbe qualquer menção a temas LGBTQIAP+ nas obras publicadas no país. — No conjunto, 2022 foi o ano que virou nosso mundo de ponta-cabeça. O escândalo em torno do livro obrigou a gente a reorganizar toda nossa vida: mudar para outro país, se despedir dos amigos, se afastar das pessoas amadas e construir de outra forma a carreira de escritora — diz Elena, em entrevista por e-mail. — Não vamos esconder que os ataques dos políticos e da propaganda russa para cima de nós nos assustou. Mas como dizem: “o que não te mata te faz mais forte”. Vencendo o medo, encontramos dentro de nós forças para ir adiante, lutar e não nos entregar. “Verão de lenço vermelho” conta a história de amor de dois jovens soviéticos que se conhecem em um acampamento de verão. Volódia atua como monitor e líder do grupo de teatro, do qual Iura é forçado a participar após se envolver em um incidente. O despertar da sexualidade ocorre em clima de repressão e tensão constante. Vinte anos depois, Iura retorna ao acampamento, agora em ruínas, e revive memórias daquele verão, período de descobertas que moldaram sua vida. A paixão entre os rapazes é retratada de forma singela, terna e inocente. Segundo as autoras, essa abordagem desafiou o estigma negativo da comunidade queer na sociedade russa. — A história deu um empurrão em muitos leitores rumo a um posicionamento mais humano e empático — diz Katerina. — Recebemos muitas mensagens de pessoas que antes tinham um olhar homofóbico e que, depois de ler o livro, começaram a se posicionar com grande simpatia e compreensão em relação às pessoas LGBTQIAP+. Entre grupos conservadores, “Verão de lenço vermelho” foi acusado de fazer “propaganda gay”. A dupla de autoras também foi atacada por figuras notáveis da cultura do país, como o cineasta Nikita Mikhalkov, que concorreu ao Oscar de 1994 pelo filme “O sol enganador”. Apoiador de Vladimir Putin e da invasão russa na Ucrânia, ele espalhou teorias da conspiração afirmando que o livro fazia parte de uma campanha “degenerada” do Ocidente. — A tentativa do Kremlin de demonizar a homossexualidade é uma necessidade política — diz Elena, que define o regime de Putin como ditatorial. — Para uma ditadura, é indispensável a existência não só de um inimigo externo, mas também de um interno, já que o ódio crescente na sociedade tem de ser derramado em cima de alguém. No front externo, a Rússia tornou inimigos a Ucrânia e os chamados “agente estrangeiros”. No lado interno, a comunidade LGBTQIAP+. Liberdade digital Segundo as autoras, o livro só alcançou os leitores russos por ter circulado primeiro nas plataformas digitais, um território supostamente menos vigiado. Elas garantem que, mesmo banido das lojas, o livro continua sendo amplamente compartilhado na internet. A proibição a livros com temática LGBTQIAP+, vale lembrar, só atingiu a venda dos livros, não a sua produção. — Na Rússia, o mundo da literatura on-line e das fanfics é um espaço muito mais livre do que o da literatura publicada — diz Elena. — Sem moderadores nem temas proibidos, a internet é um refúgio para a comunidade queer, onde é possível se expressar ou procurar representações de si. Isso é ainda mais importante nesse momento, em que as pessoas LGBTQIAP+ que vivem na Rússia se encontram em perigo só por existir. “Verão de lenço vermelho” representou um choque
Lançado agora no país, ‘Verão de lenço vermelho’ virou fenômeno editorial na Rússia: 'Demonizar a homossexualidade é uma necessidade política’, diz escritoras A princípio, o romance “Verão de lenço vermelho”, lançado agora no Brasil pela Seguinte, não causaria espanto na estante de livros Young Adult: trata-se de uma história de amor entre dois rapazes que tem como charme de se passar na União Soviética dos anos 1980. Seu êxito, porém, gerou uma das maiores reações conservadoras dos últimos anos no mundo literário. Leia também: Pesquisa da Flup mapeia hábitos de leitura nas periferias do Rio e aponta 'demanda reprimida' por livros Crítica: Em 'Tédio terminal', cultuada autora de ficção científica dos anos 1980 antecipa estagnação social do Japão Escrita pela russa Elena Malíssova e pela ucraniana Katerina Silvánova em 2016, a narrativa surgiu de forma discreta, em uma plataforma on-line. Nos quatro anos seguintes, o texto viralizou nas redes, inspirou jovens artistas e foi transformado em livro físico, vendendo mais de 200 mil cópias em menos de seis meses. O sucesso despertou a repressão do governo russo e a fúria de ativistas anti-LGBTQIAP+, que chegaram a lançar uma campanha para banir o romance. As escritoras Elena Malisova e Katerina Silvanova Ira Guzova /Diana Kokhna/ Divulgação Resultado: as autoras sofreram ameaças de morte e deixaram a Rússia — Elena, rumo à Alemanha, e Katerina de volta para a Ucrânia (em entrevista ao jornal Vanguardia, de Barcelona, ela disse: “mesmo com a guerra, me sinto mais segura aqui”). Enquanto isso, o regime de Putin usou a repercussão do livro como pretexto para aprovar, no fim de 2022, uma lei que proíbe qualquer menção a temas LGBTQIAP+ nas obras publicadas no país. — No conjunto, 2022 foi o ano que virou nosso mundo de ponta-cabeça. O escândalo em torno do livro obrigou a gente a reorganizar toda nossa vida: mudar para outro país, se despedir dos amigos, se afastar das pessoas amadas e construir de outra forma a carreira de escritora — diz Elena, em entrevista por e-mail. — Não vamos esconder que os ataques dos políticos e da propaganda russa para cima de nós nos assustou. Mas como dizem: “o que não te mata te faz mais forte”. Vencendo o medo, encontramos dentro de nós forças para ir adiante, lutar e não nos entregar. “Verão de lenço vermelho” conta a história de amor de dois jovens soviéticos que se conhecem em um acampamento de verão. Volódia atua como monitor e líder do grupo de teatro, do qual Iura é forçado a participar após se envolver em um incidente. O despertar da sexualidade ocorre em clima de repressão e tensão constante. Vinte anos depois, Iura retorna ao acampamento, agora em ruínas, e revive memórias daquele verão, período de descobertas que moldaram sua vida. A paixão entre os rapazes é retratada de forma singela, terna e inocente. Segundo as autoras, essa abordagem desafiou o estigma negativo da comunidade queer na sociedade russa. — A história deu um empurrão em muitos leitores rumo a um posicionamento mais humano e empático — diz Katerina. — Recebemos muitas mensagens de pessoas que antes tinham um olhar homofóbico e que, depois de ler o livro, começaram a se posicionar com grande simpatia e compreensão em relação às pessoas LGBTQIAP+. Entre grupos conservadores, “Verão de lenço vermelho” foi acusado de fazer “propaganda gay”. A dupla de autoras também foi atacada por figuras notáveis da cultura do país, como o cineasta Nikita Mikhalkov, que concorreu ao Oscar de 1994 pelo filme “O sol enganador”. Apoiador de Vladimir Putin e da invasão russa na Ucrânia, ele espalhou teorias da conspiração afirmando que o livro fazia parte de uma campanha “degenerada” do Ocidente. — A tentativa do Kremlin de demonizar a homossexualidade é uma necessidade política — diz Elena, que define o regime de Putin como ditatorial. — Para uma ditadura, é indispensável a existência não só de um inimigo externo, mas também de um interno, já que o ódio crescente na sociedade tem de ser derramado em cima de alguém. No front externo, a Rússia tornou inimigos a Ucrânia e os chamados “agente estrangeiros”. No lado interno, a comunidade LGBTQIAP+. Liberdade digital Segundo as autoras, o livro só alcançou os leitores russos por ter circulado primeiro nas plataformas digitais, um território supostamente menos vigiado. Elas garantem que, mesmo banido das lojas, o livro continua sendo amplamente compartilhado na internet. A proibição a livros com temática LGBTQIAP+, vale lembrar, só atingiu a venda dos livros, não a sua produção. — Na Rússia, o mundo da literatura on-line e das fanfics é um espaço muito mais livre do que o da literatura publicada — diz Elena. — Sem moderadores nem temas proibidos, a internet é um refúgio para a comunidade queer, onde é possível se expressar ou procurar representações de si. Isso é ainda mais importante nesse momento, em que as pessoas LGBTQIAP+ que vivem na Rússia se encontram em perigo só por existir. “Verão de lenço vermelho” representou um choque de gerações na Rússia, acredita Elena. O romance teria manchado as memórias de muitos russos mais velhos, que sentem nostalgia pela União Soviética e relembram com carinho de suas experiências nos acampamentos de verão. Já Elena e Katerina, que nasceram nos anos 1980 e chegaram à adolescência após o fim da União Soviética, em 1991, se recusam a romantizar o período. O livro explora o clima de repressão e vigilância que marcou a vida de jovens como Iura e Volódia, cujas experiências e desejos eram vistos como ameaças ao “ideal soviético”. — Vimos as consequências da URSS acontecerem ao nosso redor: a estagnação dos países que surgiram depois de 1991, as crises econômicas, uma sociedade mergulhada em estereótipos — diz Katerina. — Já a maioria dos nossos leitores, que nasceu em um novo século, entende a URSS como algo saído dos livros de História. Para eles, a ambientação do nosso livro é só um cenário interessante, e o comunismo e tudo mais são os atributos incomuns daquele tempo. Talvez seja mais ou menos como nós entendemos livros que falam de antigos reis e duelos de cavaleiros ou enredos que nos contam de culturas e costumes de países distantes. Parceria além da guerra Desde fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, os países de Elena e Katerina se tornaram inimigos. Mas a parceria singular não foi afetada. A declaração sobre o assunto é conjunta: — Entre nós não existe absolutamente nenhum conflito. Estamos do mesmo lado e temos opinião idêntica: a Rússia invadiu território alheio e está conduzindo uma guerra agressiva, e a Ucrânia é vítima dessa agressão. Não nos diferenciamos uma da outra, nem as pessoas em geral, por nacionalidade. Nenhuma de nós escolheu o lugar em que nasceu, da mesma forma que as pessoas, ao nascer, não escolhem a orientação sexual ou o gênero. O que realmente podemos escolher são nossos olhares e nossa relação uns com os outros. E nós escolhemos ser pessoas que valorizam a vida humana, a bondade e a liberdade. Nós escolhemos ser verdadeiras amigas apesar de tudo. (Bolívar Torres)
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