Crítica/Ópera: 'Rusalka' cria belo diapasão musical para o Municipal do Rio
Com elenco liderado por Ludmilla Bauerfeldt, espetáculo dirigido por Malheiro e Heller-Lopes é ovacionado no encerramento da melhor temporada lírica após a pandemia Sob calorosos aplausos, a quinta e última récita de “Rusalka” encerrou no domingo (24) a temporada de ópera do Theatro Municipal do Rio, e não é difícil explicar seu sucesso. É possível que este tenha sido o espetáculo com maior qualidade do ponto de vista musical desde o início da atual gestão da casa, presidida por Clara Paulino e com direção artística de Eric Herrero. “Rusalka” (1901) é o maior êxito da ópera em idioma tcheco. O libreto de conto de fadas de Jaroslav Kvapil, baseado nas antigas lendas centro-europeias de ninfas aquáticas e maldições, perambulou pela região da Boêmia, então parte do Império Austro-Húngaro, até encontrar nas linhas românticas de Antonín Dvorák (“dvór-ják”) seu veículo definitivo. Àquela altura, Dvorák era um cidadão do mundo que fazia uma travessia de gerações: além de ter contado desde cedo com a admiração de Brahms, era conhecedor de Wagner e do impressionismo francês. Em “Rusalka”, deixou um testamento de lirismo e plasticidade sensorial, que o Rio enfim conheceu 120 anos depois de sua morte. Regente convidado, Luiz Fernando Malheiro encontrou uma Sinfônica do Municipal em melhor forma do que há um ano atrás, quando dirigiu “La Traviata”. A seção de cordas, encorpada com reforços pontuais e enriquecida pela harpa celestial de Silvia Braga, mostrou coesão e sensibilidade. Por sua vez, os sopros se ouviram com excelente blending de tempos e timbres, especialmente quando dobravam as linhas vocais de alto quilate. É muito difícil encontrar, no Brasil, um quinteto vocal com mais experiência e fluidez vocal do que este que integrou “Rusalka”. O tenor Giovanni Tristacci, metálico e ardorosamente mediterrâneo, apresentou um Príncipe de belíssima emissão e atuação magnífica, superando as inconsistências que o próprio personagem traz de fábrica. Baixo-barítono num dos melhores anos vocais de sua carreira, Lício Bruno (o Espírito das Águas, pai de Rusalka) se beneficiou do lirismo da partitura; usou um gestual mais contido e refinado do que o que costuma empregar em papéis dramáticos e cativou o público como entidade contrariada pelo desejo da filha. No trio feminino, luxo, poder e riqueza. Jamais haverá miscast enquanto a soprano Eliane Coelho, maior dama do teatro lírico brasileiro, tiver voz. Aos 73 anos e com ótimos serviços prestados ao idioma tcheco (lembremo-nos, por exemplo, dos aplausos efusivos que recebeu na “Jenufa” de Janácek, também com Heller-Lopes), Eliane, a Inoxidável, encarnou a Princesa Estrangeira e imprimiu uma antagonista de Rusalka com desenvoltura e sensualidade, cumprindo assim os desígnios da bruxa Jezibaba (“yesh-baba”) – interpretada pela mezzo Denise de Freitas, de timbre inconfundível e teatralidade comprovada. É impressionante a facilidade com que Freitas domina o palco inteiro, seja de fraque, seja em trajes de bruxa, a cada vez que entra em cena. Por tudo isso, é assombroso que a soprano Ludmilla Bauerfeldt tenha se tornado o principal destaque vocal desta produção. Apoiada nos ombros de gigantes e silenciosa pela maior parte do segundo ato, a jovem carioca treinada no Scala de Milão assinou com sua “Rusalka” uma promessa de carreira internacional a se cumprir. Em seu papel, a Praça Floriano teve o maior volume perceptível do elenco, além de um fraseado elegante na “Canção da Lua” e uma força interpretativa que catapultaram esta encenação para um outro nível. Tenor e contratenor respectivamente, Geílson Campos e Hebert Gomes foram comprimários de alta qualidade como empregados do palácio. Cenicamente, a direção de André Heller-Lopes (vista primeiro no Auditório de Tenerife, Espanha) se impõe uma série de desafios, mantendo-se enigmática até sua culminação. O primeiro ato e o terceiro evocam uma saída para metalinguagem que o diretor carioca já havia manifestado em “Anna Bolena”: em vez de um lago na floresta, o ambiente é de “realidade”, amparado por lâmpadas no chão que demarcam diagonais. A cenografia de Renato Theobaldo evoca uma sala de concerto, com um piano à esquerda, enquanto no meio do palco cadeiras e estantes de partitura à espera de uma orquestra de câmara. Um gramofone sugere os sons que vêm de fora do palco, enquanto globos espelhados pendem do alto, rebatendo vez por outra luzes diversas de Gonzalo Córdova. Ao fundo, um gigantesco telão, desenhado por Derek Pedros, evoca paisagens aquáticas. O espectador é convidado a se perturbar com a justaposição das duas informações, pouco orgânicas entre si. Ali, entendemos que Rusalka, apaixonada por um príncipe e sofrendo de disforia de espécie, não se identifica mais como ninfa das águas: quer ser humana. Como em “A Pequena Sereia”, franquia Disney que bebe da mesma história, Rusalka está disposta a sacrificar a própria voz a fim de caminhar pelo mundo terrestre e viver o amor de sua vida. Num ritual mágico, Jezibaba opera e
Com elenco liderado por Ludmilla Bauerfeldt, espetáculo dirigido por Malheiro e Heller-Lopes é ovacionado no encerramento da melhor temporada lírica após a pandemia Sob calorosos aplausos, a quinta e última récita de “Rusalka” encerrou no domingo (24) a temporada de ópera do Theatro Municipal do Rio, e não é difícil explicar seu sucesso. É possível que este tenha sido o espetáculo com maior qualidade do ponto de vista musical desde o início da atual gestão da casa, presidida por Clara Paulino e com direção artística de Eric Herrero. “Rusalka” (1901) é o maior êxito da ópera em idioma tcheco. O libreto de conto de fadas de Jaroslav Kvapil, baseado nas antigas lendas centro-europeias de ninfas aquáticas e maldições, perambulou pela região da Boêmia, então parte do Império Austro-Húngaro, até encontrar nas linhas românticas de Antonín Dvorák (“dvór-ják”) seu veículo definitivo. Àquela altura, Dvorák era um cidadão do mundo que fazia uma travessia de gerações: além de ter contado desde cedo com a admiração de Brahms, era conhecedor de Wagner e do impressionismo francês. Em “Rusalka”, deixou um testamento de lirismo e plasticidade sensorial, que o Rio enfim conheceu 120 anos depois de sua morte. Regente convidado, Luiz Fernando Malheiro encontrou uma Sinfônica do Municipal em melhor forma do que há um ano atrás, quando dirigiu “La Traviata”. A seção de cordas, encorpada com reforços pontuais e enriquecida pela harpa celestial de Silvia Braga, mostrou coesão e sensibilidade. Por sua vez, os sopros se ouviram com excelente blending de tempos e timbres, especialmente quando dobravam as linhas vocais de alto quilate. É muito difícil encontrar, no Brasil, um quinteto vocal com mais experiência e fluidez vocal do que este que integrou “Rusalka”. O tenor Giovanni Tristacci, metálico e ardorosamente mediterrâneo, apresentou um Príncipe de belíssima emissão e atuação magnífica, superando as inconsistências que o próprio personagem traz de fábrica. Baixo-barítono num dos melhores anos vocais de sua carreira, Lício Bruno (o Espírito das Águas, pai de Rusalka) se beneficiou do lirismo da partitura; usou um gestual mais contido e refinado do que o que costuma empregar em papéis dramáticos e cativou o público como entidade contrariada pelo desejo da filha. No trio feminino, luxo, poder e riqueza. Jamais haverá miscast enquanto a soprano Eliane Coelho, maior dama do teatro lírico brasileiro, tiver voz. Aos 73 anos e com ótimos serviços prestados ao idioma tcheco (lembremo-nos, por exemplo, dos aplausos efusivos que recebeu na “Jenufa” de Janácek, também com Heller-Lopes), Eliane, a Inoxidável, encarnou a Princesa Estrangeira e imprimiu uma antagonista de Rusalka com desenvoltura e sensualidade, cumprindo assim os desígnios da bruxa Jezibaba (“yesh-baba”) – interpretada pela mezzo Denise de Freitas, de timbre inconfundível e teatralidade comprovada. É impressionante a facilidade com que Freitas domina o palco inteiro, seja de fraque, seja em trajes de bruxa, a cada vez que entra em cena. Por tudo isso, é assombroso que a soprano Ludmilla Bauerfeldt tenha se tornado o principal destaque vocal desta produção. Apoiada nos ombros de gigantes e silenciosa pela maior parte do segundo ato, a jovem carioca treinada no Scala de Milão assinou com sua “Rusalka” uma promessa de carreira internacional a se cumprir. Em seu papel, a Praça Floriano teve o maior volume perceptível do elenco, além de um fraseado elegante na “Canção da Lua” e uma força interpretativa que catapultaram esta encenação para um outro nível. Tenor e contratenor respectivamente, Geílson Campos e Hebert Gomes foram comprimários de alta qualidade como empregados do palácio. Cenicamente, a direção de André Heller-Lopes (vista primeiro no Auditório de Tenerife, Espanha) se impõe uma série de desafios, mantendo-se enigmática até sua culminação. O primeiro ato e o terceiro evocam uma saída para metalinguagem que o diretor carioca já havia manifestado em “Anna Bolena”: em vez de um lago na floresta, o ambiente é de “realidade”, amparado por lâmpadas no chão que demarcam diagonais. A cenografia de Renato Theobaldo evoca uma sala de concerto, com um piano à esquerda, enquanto no meio do palco cadeiras e estantes de partitura à espera de uma orquestra de câmara. Um gramofone sugere os sons que vêm de fora do palco, enquanto globos espelhados pendem do alto, rebatendo vez por outra luzes diversas de Gonzalo Córdova. Ao fundo, um gigantesco telão, desenhado por Derek Pedros, evoca paisagens aquáticas. O espectador é convidado a se perturbar com a justaposição das duas informações, pouco orgânicas entre si. Ali, entendemos que Rusalka, apaixonada por um príncipe e sofrendo de disforia de espécie, não se identifica mais como ninfa das águas: quer ser humana. Como em “A Pequena Sereia”, franquia Disney que bebe da mesma história, Rusalka está disposta a sacrificar a própria voz a fim de caminhar pelo mundo terrestre e viver o amor de sua vida. Num ritual mágico, Jezibaba opera essa transformação, não sem antes alertá-la: se o amor não triunfar, sua transição será revertida para um estado de exílio nas profundezas, longe das outras ninfas (dotadas das adoráveis vozes de Carolina Morel, Mariana Gomes e Lara Cavalcanti). O segundo ato nos leva a um palácio, ambiente do conto de fadas, em que a trama avança para o final infeliz. Heller e Theobaldo recorrem a telas translúcidas para criar um ambiente labiríntico onde o mal triunfa: seduzido pela Princesa Estrangeira, o Príncipe abandona a muda Rusalka, condenando ambos à maldição de Jezibaba. No terceiro ato, voltamos à sala de concerto, desta vez com cadeiras empilhadas e o piano ausente, enquanto o telão mostra um naufrágio, onde Rusalka se arrepende de ter arriscado tudo. Ao se encaminhar para o final, os figurinos de Marcelo Marques se revelam mais fascinantemente inventivos na evocação da sereia desgraçada e, mesmo não sendo o espetáculo mais visualmente coeso da parceria Heller/Theobaldo, a esquisita cenografia revela um potente enigma: todos os personagens se apresentam, enfim, como músicos e solistas regidos pela bruxa, ocupando cadeiras e partituras, justificando a sala de concerto, enquanto o Príncipe se afoga num convincente redemoinho de luz e água, embora numa posição pouco harmônica e algo conflitante com a “regência” de Denise de Freitas. O maior senão desta Rusalka, no entanto, nos leva de volta a Malheiro e sua habitual preferência por leituras completistas. É nítido que a partitura de Dvorák se beneficia quando sofre cortes tradicionalmente consagrados que evitam a perda de potência da obra, o que ocorreu nos atos II e III. Mesmo assim, “Rusalka” encerra o ano lírico de 2024 do Municipal (o melhor do pós-pandemia, com cinco títulos) como um belíssimo diapasão de qualidade musical, no qual as produções futuras podem e devem se espelhar.
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