Crítica: 'Krakatoa', de Veronica Stigger, associa fantasmas, diário de viagem e erupções em narrativas sobre prazer

Escritora gaúcha desvia da distopia óbvia e escolhe a imaginação literária, construindo um tipo de narrativa que não chora e nem se cala Em 1883, das entranhas de uma ilha na Indonésia irrompeu uma das grandes catástrofes da História. A erupção do Krakatoa devastou povoados, provocou tsunamis em costas longínquas e gerou mais de 30 mil mortes. Sua força foi tão grande que alterou o clima do planeta. Por outro lado, fez luzir alguns dos mais deslumbrantes crepúsculos de que se tem notícia. Grammy: Anitta é a única representante brasileira nas indicações Liam Payne: polícia investiga desaparecimento de Rolex que cantor usava antes de morrer Os relatos sobre o desastre, descrevendo seu impacto infernal ao redor do globo, frequentemente evocam a ideia de apocalipse. E é dali — da ponta aguda de vida que encara a extinção — que Veronica Stigger puxa o fio de “Krakatoa”. Importante: apesar de dar nome ao livro, a tragédia do século XIX não é seu elemento central. Tanto que o vulcão só dá as caras lá pelas tantas. Antes disso, narrativas breves, sem nexo aparente entre si, apresentam personagens que são sobreviventes de cataclismos indefinidos. Com o estilo tão característico da autora gaúcha, que enovela estranheza e ironia, nonsense e autoficção, fantasia e pilhéria, os textos curtos de “Krakatoa” descrevem a devastação e as ruínas a confluir não para o vazio, mas sim a florescer em tons oníricos. Não à toa, fantasmas de diferentes tipos vagam em suas páginas. Em vez de horripilantes, emergem como personagens corriqueiros da existência coletiva. E, também, como insistência de vida que embaralha o tempo, fazendo jorrar escombros do passado sobre a superfície tão vulnerável do presente — especialmente o nosso. É o caso de “Muntagna”, em que uma pessoa observa seus ex-colegas de escola, todos mortos, ocuparem-se num obstinado ritual de coletar gelo para a produção de granitas, a sobremesa italiana. Ou de “Alba”, em que o personagem-narrador, talvez o último sobrevivente após o colapso, tenta descrever o único som então audível sobre a Terra: o coro de vulcões. Enquanto eles cantam, o homem ejacula. Entremeados a eles, são os próprios elementos da natureza que assumem a narrativa. Gelo, água e sol tornam-se personagens teatrais, irônicos, desejantes. Dotados de espírito investigativo, serpeiam entre monólogos filosóficos e colóquios descontraídos. “Quisera eu ser pedra para vestir um belo casaco de limo”, fabula o fogo. “É preciso levar em conta o papel que o corpo tem no pensamento. É preciso pesar o pensamento, como se pesa um bebê”, sugere o coro de folhagens que se agita no mangue. Onipotentes e algo zombeteiros, parecem nos lançar as palavras de Kafka, citadas mais adiante: “há esperança suficiente, esperança infinita — mas não para nós”. Não para vocês, no caso. Um fruto estranho Obra inclassificável, em que a autora avança em seu já conhecido exercício de burlar formatos tradicionais de narrativa, “Krakatoa” não é romance, apanhado de contos ou livro de fragmentos. É, antes, um desses “frutos estranhos” que têm aparecido na arte literária brasileira, como define a crítica Florencia Garramuño, referindo-se aos experimentos que se expandem num desbordar de muros e barreiras de contenção. E que, no caso de Stigger, trazem como traço marcante o jogo de referências exteriores ao livro, tramando conexões inesperadas entre personagens e tempos históricos, entre sua exuberante fabulação e pistas disso que, por falta de termo melhor, chamamos de “real”. m 2017, Stigger viajou à Indonésia para participar de um festival literário, fato facilmente averiguável. Pois são micronarrativas e reflexões sobre uma viagem à Indonésia que ocupam grande parte da segunda metade de “Krakatoa”. Sua incursão ao arquipélago foi feita na companhia do poeta Victor Heringer, que morreria precocemente, no ano seguinte. Também a narradora deste livro viaja na companhia de um jovem poeta chamado Victor. Elocubrações teóricas à parte, trata-se de uma bela homenagem. Nesta segunda parte da obra, a ficção desbragada cede lugar a uma miscelânea de textos que evocam anotações, recortes de notícias, diários de viagem, informações de almanaque, memórias. Convocam, por exemplo, a visita de Clarice Lispector ao Vesúvio. A recusa de Michel Temer por permanecer no Palácio da Alvorada, alegando que estaria assombrado. O passeio fascinado de Ingrid Bergman por entre as crateras ardentes dos Campi Flegrei. Em comum entre eles, a presença de duas coisas que nos lembram de nossa instável condição terrena: vulcões e fantasmas. Em certo sentido, “Krakatoa” é um livro sobre o prazer que desafia o fim. Ou, em outras palavras, sobre as peripécias do desejo de narrar, em sua recusa por aderir ao desencanto de um mundo em vias de extinção. Ao encarar a “boca aberta e ardente do vulcão”, Stigger escolhe não o viés da distopia óbvia, mas sim o da imaginação literária. Com isso, constrói um tipo de narrativa que, assim como se autodefine o petróleo em seu monólog

Nov 9, 2024 - 04:31
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Crítica: 'Krakatoa', de Veronica Stigger, associa fantasmas, diário de viagem e erupções em narrativas sobre prazer

Escritora gaúcha desvia da distopia óbvia e escolhe a imaginação literária, construindo um tipo de narrativa que não chora e nem se cala Em 1883, das entranhas de uma ilha na Indonésia irrompeu uma das grandes catástrofes da História. A erupção do Krakatoa devastou povoados, provocou tsunamis em costas longínquas e gerou mais de 30 mil mortes. Sua força foi tão grande que alterou o clima do planeta. Por outro lado, fez luzir alguns dos mais deslumbrantes crepúsculos de que se tem notícia. Grammy: Anitta é a única representante brasileira nas indicações Liam Payne: polícia investiga desaparecimento de Rolex que cantor usava antes de morrer Os relatos sobre o desastre, descrevendo seu impacto infernal ao redor do globo, frequentemente evocam a ideia de apocalipse. E é dali — da ponta aguda de vida que encara a extinção — que Veronica Stigger puxa o fio de “Krakatoa”. Importante: apesar de dar nome ao livro, a tragédia do século XIX não é seu elemento central. Tanto que o vulcão só dá as caras lá pelas tantas. Antes disso, narrativas breves, sem nexo aparente entre si, apresentam personagens que são sobreviventes de cataclismos indefinidos. Com o estilo tão característico da autora gaúcha, que enovela estranheza e ironia, nonsense e autoficção, fantasia e pilhéria, os textos curtos de “Krakatoa” descrevem a devastação e as ruínas a confluir não para o vazio, mas sim a florescer em tons oníricos. Não à toa, fantasmas de diferentes tipos vagam em suas páginas. Em vez de horripilantes, emergem como personagens corriqueiros da existência coletiva. E, também, como insistência de vida que embaralha o tempo, fazendo jorrar escombros do passado sobre a superfície tão vulnerável do presente — especialmente o nosso. É o caso de “Muntagna”, em que uma pessoa observa seus ex-colegas de escola, todos mortos, ocuparem-se num obstinado ritual de coletar gelo para a produção de granitas, a sobremesa italiana. Ou de “Alba”, em que o personagem-narrador, talvez o último sobrevivente após o colapso, tenta descrever o único som então audível sobre a Terra: o coro de vulcões. Enquanto eles cantam, o homem ejacula. Entremeados a eles, são os próprios elementos da natureza que assumem a narrativa. Gelo, água e sol tornam-se personagens teatrais, irônicos, desejantes. Dotados de espírito investigativo, serpeiam entre monólogos filosóficos e colóquios descontraídos. “Quisera eu ser pedra para vestir um belo casaco de limo”, fabula o fogo. “É preciso levar em conta o papel que o corpo tem no pensamento. É preciso pesar o pensamento, como se pesa um bebê”, sugere o coro de folhagens que se agita no mangue. Onipotentes e algo zombeteiros, parecem nos lançar as palavras de Kafka, citadas mais adiante: “há esperança suficiente, esperança infinita — mas não para nós”. Não para vocês, no caso. Um fruto estranho Obra inclassificável, em que a autora avança em seu já conhecido exercício de burlar formatos tradicionais de narrativa, “Krakatoa” não é romance, apanhado de contos ou livro de fragmentos. É, antes, um desses “frutos estranhos” que têm aparecido na arte literária brasileira, como define a crítica Florencia Garramuño, referindo-se aos experimentos que se expandem num desbordar de muros e barreiras de contenção. E que, no caso de Stigger, trazem como traço marcante o jogo de referências exteriores ao livro, tramando conexões inesperadas entre personagens e tempos históricos, entre sua exuberante fabulação e pistas disso que, por falta de termo melhor, chamamos de “real”. m 2017, Stigger viajou à Indonésia para participar de um festival literário, fato facilmente averiguável. Pois são micronarrativas e reflexões sobre uma viagem à Indonésia que ocupam grande parte da segunda metade de “Krakatoa”. Sua incursão ao arquipélago foi feita na companhia do poeta Victor Heringer, que morreria precocemente, no ano seguinte. Também a narradora deste livro viaja na companhia de um jovem poeta chamado Victor. Elocubrações teóricas à parte, trata-se de uma bela homenagem. Nesta segunda parte da obra, a ficção desbragada cede lugar a uma miscelânea de textos que evocam anotações, recortes de notícias, diários de viagem, informações de almanaque, memórias. Convocam, por exemplo, a visita de Clarice Lispector ao Vesúvio. A recusa de Michel Temer por permanecer no Palácio da Alvorada, alegando que estaria assombrado. O passeio fascinado de Ingrid Bergman por entre as crateras ardentes dos Campi Flegrei. Em comum entre eles, a presença de duas coisas que nos lembram de nossa instável condição terrena: vulcões e fantasmas. Em certo sentido, “Krakatoa” é um livro sobre o prazer que desafia o fim. Ou, em outras palavras, sobre as peripécias do desejo de narrar, em sua recusa por aderir ao desencanto de um mundo em vias de extinção. Ao encarar a “boca aberta e ardente do vulcão”, Stigger escolhe não o viés da distopia óbvia, mas sim o da imaginação literária. Com isso, constrói um tipo de narrativa que, assim como se autodefine o petróleo em seu monólogo fantástico, não chora e nem se cala. Pois é, ao mesmo tempo, música e destruição. Juliana Krapp é jornalista e autora de "Uma volta pela lagoa” (Círculo de Poemas), finalista do prêmio Oceanos 2024

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