Como o paleontólogo autodidata William Nava desvendou a fauna pré-histórica de São Paulo
Em entrevista, o ex-bancário que achou um dinossauro em Marília (SP) há três décadas conta como transformou a região num polo de descobertas importantes e fundou um museu científico na cidade Uma conquista especial para um biólogo é ser homenageado no nome de uma nova espécie descoberta, algo de valor simbólico que transcende até o título de doutorado. O paleontólogo William Nava, de Marília (SP), exerce a profissão sem ter pós-graduação na área, mas sua importância para a ciência brasileira está cristalizada: seu sobrenome está nos nomes científicos de três animais extintos cujos fósseis ele mesmo desenterrou. Cobiçada: Submersa no Katrina e confiscada, esmeralda bilionária prestes a voltar ao Brasil ganhou fama de amaldiçoada nos EUA O pesquisador teve sua carreira coroada na semana passada, com a apresentação de uma espécie de pássaro pré-histórico que é um dos elos perdidos entre aves e dinossauros. Os coautores da descoberta a batizaram de Navaornis hestiae em homenagem a seu descobridor. Fundador do Museu de Paleontologia de Marília, que completa 20 anos em dezembro, Nava inspirou até personagem de novela, e além de cientista autodidata é figura importante para a divulgação da ciência no Brasil. Tendo encontrado fósseis de dinossauros e outros animais em fazendas, obras de construção e até em beira de estrada, Nava fala qual é o segredo para tanto sucesso em suas buscas. — Eu sou muito motivado por intuição, além de gostar muito do assunto. — diz. — Mesmo que eu vá no campo e não encontre nada naquele dia, não importa. Para mim isso é uma terapia. Em entrevista ao GLOBO, o paleontólogo contou sua história. Como o senhor se tornou paleontólogo sem ter formação na área? No Brasil não existe graduação em paleontologia. Normalmente o paleontólogo é formado em ciências biológicas ou geologia. Eu sou formado em história e jornalismo, mas desde criança sempre gostei de paleontologia. Eu moro em Marília há 58 anos, e a região aqui tem uma topografia que chama bastante a atenção, com escarpas rochosas que o pessoal chama de mini-cânions, e tem fóssil preservado. Em 1993, eu descobri o primeiro dinossauro aqui, e se abriu uma janela na minha vida. Antes disso eu era bancário. Trabalhei 17 anos no Itaú e fui demitido. Quando eu consegui achar esse fóssil, que era um fragmento ósseo de um titanossauro, eu imaginei que poderia ser, talvez, entre aspas, um "paleontólogo", e foi o que eu passei a fazer. Essa primeira descoberta teve uma repercussão nacional porque tinham acabado de lançar o primeiro filme Jurassic Park, e a prefeitura me contratou. Eu tive a oportunidade de continuar procurando fóssil na região de Marília. Esse primeiro dinossauro foi descrito em 2013 com o nome Brasilotitan, e estava no Museu Nacional do Rio de Janeiro, mas deve ter sido perdido no incêndio em 2018. Por que o senhor encontrou o pássaro Navaornis em Presidente Prudente, que nem é muito perto de Marília? Eu já tinha encontrado fósseis em Prudente no ano 2000, um dinossauro, quando fui para lá para uma atividade acadêmica. Depois voltei em 2004 porque precisava rever o trecho da rodovia onde eu havia tinha achado ossos, e quando estava retornando para Marília vi uma colina alta que me despertou a atenção. Nela tinha um terreno baldio, na esquina de uma rua, cheio de mato, com lixo largado. Tinha algumas rochas expostas ali, e quando fui olhar topei com os ossinhos pequenos nelas. Eu comecei a coletar, mas demorei três meses para entender que eram ossos de aves. Inicialmente eu imaginei que eram anfíbios. Vi que eram aves depois de consultar um livro do professor Ismar de Souza, da UFRJ, em parceria com o Herculano Alvarenga, de Taubaté, e levei os fósseis para ele ver. Ele ficou interessado e logo viu que eram ossos de ave Enantiornithes, um grupo extinto que tem vários registros na Argentina. Fiz então uma parceria com o Herculano. Conforme eu ia então escavando o sítio de Presidente Prudente, eu preparava os fósseis aqui no museu em Marília e levava para Taubaté de carro. Mas o Herculano estava com dificuldade de estudar esses ossinhos, que estavam muito desarticulados, embora muito bem preservados, e sem um crânio. Em 2015 eu coletei um bloco de rocha com uns 50 cm de largura no sítio em Prudente, trouxe para Marília, e comecei a preparar essa rocha aqui. Mas interrompi o trabalho e, depois, só em 2018 eu consegui desprender um bloquinho de rocha que revelou a mandíbula da ave. Depois veio o craniozinho, praticamente todo exposto na rocha. Imagina a alegria! Quando revelei o crânio, fiz foto, mandei para o Ismar e para o Luís Chiappe, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Eles ficaram felizes, reconheceram que era o primeiro crânio bem preservado achado no Brasil para uma ave do cretáceo, a era dos dinossauros. Como esse trabalho de achar o fóssil dentro da rocha foi feito? É um trabalho mecânico. Eu preparava o fóssil com uma agulha. Como eu sou canhoteiro, com a mão esquerda eu seguro a agulha, e com a mão direita e
Em entrevista, o ex-bancário que achou um dinossauro em Marília (SP) há três décadas conta como transformou a região num polo de descobertas importantes e fundou um museu científico na cidade Uma conquista especial para um biólogo é ser homenageado no nome de uma nova espécie descoberta, algo de valor simbólico que transcende até o título de doutorado. O paleontólogo William Nava, de Marília (SP), exerce a profissão sem ter pós-graduação na área, mas sua importância para a ciência brasileira está cristalizada: seu sobrenome está nos nomes científicos de três animais extintos cujos fósseis ele mesmo desenterrou. Cobiçada: Submersa no Katrina e confiscada, esmeralda bilionária prestes a voltar ao Brasil ganhou fama de amaldiçoada nos EUA O pesquisador teve sua carreira coroada na semana passada, com a apresentação de uma espécie de pássaro pré-histórico que é um dos elos perdidos entre aves e dinossauros. Os coautores da descoberta a batizaram de Navaornis hestiae em homenagem a seu descobridor. Fundador do Museu de Paleontologia de Marília, que completa 20 anos em dezembro, Nava inspirou até personagem de novela, e além de cientista autodidata é figura importante para a divulgação da ciência no Brasil. Tendo encontrado fósseis de dinossauros e outros animais em fazendas, obras de construção e até em beira de estrada, Nava fala qual é o segredo para tanto sucesso em suas buscas. — Eu sou muito motivado por intuição, além de gostar muito do assunto. — diz. — Mesmo que eu vá no campo e não encontre nada naquele dia, não importa. Para mim isso é uma terapia. Em entrevista ao GLOBO, o paleontólogo contou sua história. Como o senhor se tornou paleontólogo sem ter formação na área? No Brasil não existe graduação em paleontologia. Normalmente o paleontólogo é formado em ciências biológicas ou geologia. Eu sou formado em história e jornalismo, mas desde criança sempre gostei de paleontologia. Eu moro em Marília há 58 anos, e a região aqui tem uma topografia que chama bastante a atenção, com escarpas rochosas que o pessoal chama de mini-cânions, e tem fóssil preservado. Em 1993, eu descobri o primeiro dinossauro aqui, e se abriu uma janela na minha vida. Antes disso eu era bancário. Trabalhei 17 anos no Itaú e fui demitido. Quando eu consegui achar esse fóssil, que era um fragmento ósseo de um titanossauro, eu imaginei que poderia ser, talvez, entre aspas, um "paleontólogo", e foi o que eu passei a fazer. Essa primeira descoberta teve uma repercussão nacional porque tinham acabado de lançar o primeiro filme Jurassic Park, e a prefeitura me contratou. Eu tive a oportunidade de continuar procurando fóssil na região de Marília. Esse primeiro dinossauro foi descrito em 2013 com o nome Brasilotitan, e estava no Museu Nacional do Rio de Janeiro, mas deve ter sido perdido no incêndio em 2018. Por que o senhor encontrou o pássaro Navaornis em Presidente Prudente, que nem é muito perto de Marília? Eu já tinha encontrado fósseis em Prudente no ano 2000, um dinossauro, quando fui para lá para uma atividade acadêmica. Depois voltei em 2004 porque precisava rever o trecho da rodovia onde eu havia tinha achado ossos, e quando estava retornando para Marília vi uma colina alta que me despertou a atenção. Nela tinha um terreno baldio, na esquina de uma rua, cheio de mato, com lixo largado. Tinha algumas rochas expostas ali, e quando fui olhar topei com os ossinhos pequenos nelas. Eu comecei a coletar, mas demorei três meses para entender que eram ossos de aves. Inicialmente eu imaginei que eram anfíbios. Vi que eram aves depois de consultar um livro do professor Ismar de Souza, da UFRJ, em parceria com o Herculano Alvarenga, de Taubaté, e levei os fósseis para ele ver. Ele ficou interessado e logo viu que eram ossos de ave Enantiornithes, um grupo extinto que tem vários registros na Argentina. Fiz então uma parceria com o Herculano. Conforme eu ia então escavando o sítio de Presidente Prudente, eu preparava os fósseis aqui no museu em Marília e levava para Taubaté de carro. Mas o Herculano estava com dificuldade de estudar esses ossinhos, que estavam muito desarticulados, embora muito bem preservados, e sem um crânio. Em 2015 eu coletei um bloco de rocha com uns 50 cm de largura no sítio em Prudente, trouxe para Marília, e comecei a preparar essa rocha aqui. Mas interrompi o trabalho e, depois, só em 2018 eu consegui desprender um bloquinho de rocha que revelou a mandíbula da ave. Depois veio o craniozinho, praticamente todo exposto na rocha. Imagina a alegria! Quando revelei o crânio, fiz foto, mandei para o Ismar e para o Luís Chiappe, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Eles ficaram felizes, reconheceram que era o primeiro crânio bem preservado achado no Brasil para uma ave do cretáceo, a era dos dinossauros. Como esse trabalho de achar o fóssil dentro da rocha foi feito? É um trabalho mecânico. Eu preparava o fóssil com uma agulha. Como eu sou canhoteiro, com a mão esquerda eu seguro a agulha, e com a mão direita eu apoio a rocha e seguro uma lupa de mão. Precisa umedecer o fóssil com um conta gotas e ir manipulando com a agulha. William Nava escava vértebras articuladas de Titanossauro achado em Marília Ivan Evangelista Jr./Divulgação O trabalho foi feito em laboratório no Museu de Paleontologia de Marília. Como o senhor fundou o museu? Com o impacto da minha primeira descoberta em 1993, eu fui contratado provisoriamente pela prefeitura , entre 1994 e 1996, e cuidei do fóssil exposto no museu histórico da cidade. Eu continuei escavando os fósseis depois disso, de maneira mais anônima. Encontrei muita coisa, incluindo crocodilo, tartaruga, peixe... Fui juntando o acervo, em caixas na minha casa. Em 2004, alguns amigos me ajudaram a convencer o prefeito a disponibilizar espaço para a gente criar um embrião daquilo que viria a ser o museu. Eles nos cederam uma sala medindo sete por cinco metros, anexa ao prédio da biblioteca municipal. Isso foi o início do museu, que depois foi sendo ampliado no prédio e vai completar 20 anos agora, em 25 de dezembro de 2024. O senhor já foi inspiração para personagem de telenovela da Globo. Como isso aconteceu? Foi depois de 2009, quando eu encontrei outro dinossauro aqui na região de Marília, num barranco na beira de uma estrada. Com a notícia do dinossauro em jornal, o Walcyr Carrasco, roteirista de novelas da Globo, entrou em contato e veio aqui para Marília no ano seguinte. Ele me contou que queria incluir a descoberta de um dinossauro na história de uma novela e perguntou se eu podia mostrar para ele o lugar onde achei o titanossauro. Nós não tínhamos começado a escavação em equipe ainda. Tinha só uma escavação parcial feita por mim um ano antes. Mas os ossos estavam lá guardadinhos, encobertos por rocha e por capim. O Walcyr então decidiu fazer as cenas de escavação aqui mesmo. A novela, a Morde & Assopra, foi ao ar em 2011, baseada no dinossauro de Marília, com atores interpretando paleontólogos. Foi muito legal. E depois disso, só, em parceria com o professor Rodrigo Santucci, da Universidade de Brasília, demos continuidade às escavações em 2011. Ali nós acabamos tirando mais ou menos 70% do esqueleto desse titanossauro, que foi considerado o mais completo da espécie achado no Brasil. O museu ganhou mais nome nessa época, por causa da novela também, e a prefeitura aceitou uma sugestão de nos dar mais espaço. Depois disso ainda teve uma reforma? Em 2019, Marília conseguiu obter com o governo do estado o título de "município de interesse turístico", que garante para a cidade uma verba anual para investir só no turismo. Isso foi conquistado muito em função da topografia da cidade e das pesquisas com os dinossauros. A prefeitura aplicou essa verba então na reforma do museu, que depois reabriu em 2022 com uma nova cara, com duas novas réplicas de dinossauro e uma sala de realidade virtual. O Museu de Paleontologia de Marília, no interior paulista Ivan Evangelista Jr./Divulgação As pesquisas do museu são bancadas pela prefeitura? Em algumas situações já coloquei dinheiro do meu próprio bolso. Para eu fazer as escavações, os gastos com combustível e com mecânica é tudo por minha conta. Eu sou funcionário da prefeitura há 22 anos e toda a minha pesquisa é feita com o salário que a prefeitura me paga. - Como o senhor aprendeu a encontrar fósseis tão bem sem ter formação na área? Eu sou muito motivado por intuição, além de gostar muito do assunto. Eu já estou na paleontologia há 31 anos, e até hoje eu continuo aprendendo a "ler" a rocha. A paleontologia é essencialmente uma ciência de campo, e para a minha sorte, eu gosto muito de fazer trabalho de campo. Mesmo que eu vá a campo e não encontre nada naquele dia, não importa. Para mim isso é uma terapia. E a experiência que é necessária eu fui adquirindo manualmente, lendo muito artigo, e depois eu passei a ser assessorado pelo próprio professor Ismar, que me ajudou muito. Além do Navaornis, quais outras espécies levam seu nome? Tem o crocodilo Adamantinasuchus navae, que eu descobri aqui na região de Marília em 1999 e passei para o Ismar em 2002. Mais recentemente, uma equipe do Museu de Zoologia da USP me homenageou na descrição de um sapinho fóssil, o Mariliabatrachus navai, também por ossinhos que eu escavei. O museu não tem hoje um programa de pós-graduação próprio. Como o senhor está fazendo para transmitir seu conhecimento adiante? Eu me preocupo muito com isso, porque hoje eu estou à frente do museu, mas eu não sou eterno. É imprescindível eu formar alguém, até porque em Marília tem campus da Unesp (Universidade Estadual Paulista), mas não tem graduação de geografia nem de biologia. Eu estou treinando agora duas pesquisadoras, uma da área de geologia, a Giovanna Paixão, que é de Prudente, e outra que fez arquivologia aqui, a Rebeca Vallilo. Essas são as pessoas mais próximas com quem eu conto para tocar o museu quando eu não estiver mais à frente. E eu conto mais recentemente com a Joyce Celerino, paleontóloga que vem de Brasília, e um parceiro dela, o Daniel Martins Santos, que está fazendo uma tese sobre as descobertas aqui da região. Tocar um museu não é fácil, mas nós temos gente boa interessada.
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