'Ainda estou aqui': O sequestro que levou agentes da ditadura a torturar Rubens e Eunice Paiva
Como foi a ação da luta armada na qual embaixador suíço foi trocado por libertação de 70 presos políticos, enfurecendo regime militar O horóscopo do embaixador suíço Giovanni Bucher avisou para ele não sair de casa naqueles dias. Mas, ariano que nunca acreditara em previsões astrológicas, o diplomata acordou às 7h30, tomou o seu café da manhã (mamão e biscoitos com geleia) e deixou sua residência, na Rua Campo Belo, em Laranjeiras, no Rio, conduzido pelo motorista Ercílio Geraldo e acompanhado também pelo agente federal Helio Carvalho Araújo, rumo à embaixada de seu país, no bairro da Glória. "Ainda estou aqui": A morte de Rubens Paiva e a busca de uma mulher pela verdade Ancelmo Gois: Filme sobre crime da ditadura supera marca de 500 mil espectadores Quando estavam na Rua Conde de Baependi, um automóvel Aero Willys estacionado no lado esquerdo da via arrancou e parou atravessado diante do Buick azul do embaixador. No primeiro instante, Bucher pensou que se tratava de um acidente leve, mas, então, um homem com uma metralhadora apareceu a sua janela. Começava, naquela segunda-feira, dia 7 de dezembro de 1970, o mais longo sequestro de um diplomata realizado por guerrilheiros da luta armada contra a ditadura militar no Brasil. O episódio está sendo resgatado pelo filme "Ainda estou aqui", em cartaz nos cinemas. Dirigido pelo cineasta Walter Salles, o longa-metragem conta a história do casal Rubens e Eunice Paiva. Em janeiro de 1971, agentes da repressão mataram o engenheiro durante uma sessão de tortura, esconderam o corpo dele e criaram uma farsa para acobertar o crime. Presa e interrogada durante dez dias, Eunice dedicou sua vida a criar os cinco filhos deles e a descobrir a verdade sobre o seu marido. Acervo O GLOBO: Todas as edições do jornal desde 1925 digitalizadas para sua pesquisa "Ainda estou aqui" começa reconstruindo o clima de relativa tranquilidade na casa da família, na Praia do Leblon. Em certo momento, Rubens e Eunice se mostram apreensivos quando um telejornal noticia o sequestro de Bucher. O engenheiro havia sido um deputado federal cassado pelo regime. Ele tinha contato com pessoas que estavam na luta armada. A ação contra o diplomata suíço gerava temor de que os agentes da ditadura pudessem bater na porta do casal para chegar aos sequestradores. 'Ainda estou aqui': Selton Mello e Fernanda Torres vivem o casal Rubens e Eunice Paiva Divulgação Foi o que aconteceu. No dia 16 de janeiro de 1971, Bucher em solto troca da libertação de 70 presos políticos. O episódio representou um baque para o regime, e os órgãos de repressão fecharam o cerco em torno das pessoas que tinham qualquer ligação com guerrilheiros. No dia 20 de janeiro, feriado de São Sebastião, seis agentes da Aeronáutica entraram na residência da família Paiva e levaram o ex-deputado para prestar um depoimento. Foi a última vez em que Eunice viu o marido vivo ou morto. Bernardo Mello Franco: Caso Rubens Paiva ilustra transição incompleta para democracia A morte de Marighella: Como foi a emboscada policial que executou guerrilheiro na ditadura Realizado por sete integrantes do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o sequestro do embaixador suíço foi liderado por Carlos Lamarca, o capitão do Exército que abandonara a farda em 1969, deixando o 4º Regimento de Infantaria, em Osasco, São Paulo, numa kombi com mais de 60 fuzis FAL do arsenal militar para abastecer a luta armada. Era um dos homens mais procurados pela ditadura, considerado um traidor da pior espécie pelos oficiais das Forças Armadas. A ação na Rua Conde de Baependi não durou mais que três minutos. Ao ver o grupo se aproximando, o agente Hélio Araújo saiu do carro do diplomata com sua pistola MAB calibre 765 e tentou reagir, mas foi atingido por dois tiros (ele morreria no Hospital Miguel Couto, dias depois). Em seguida, as armas dos sequestradores foram apontadas para o motorista Ercílio Geraldo, que se jogou no chão gritando "Não me matem, tenho família para criar". Poupado, o chofer correu para se esconder numa obra. "Apesar de você": O drible de Chico Buarque na censura durante auge da repressão O embaixador assistia a tudo de olhos arregalados no banco de trás. Eram 8h45 daquela segunda-feira quando os sequestradores enfiaram Bucher num Volks vermelho que saiu cantando pneus, deixando para trás vários panfletos com um manifesto no qual a VPR assumia a autoria da ação. Perito analisa carro do embaixador da Suíça sequestrado Eurico Dantas/Agência O GLOBO Sequestrar diplomatas fazia parte da estratégia da luta armada, que, àquela altura, já havia feito o mesmo com representantes de Estados Unidos, Japão e Alemanha. Era uma forma de deixar o regime acuado. Para findar o constrangimento nas relações com os países das vítimas, os militares aceitavam libertar até dezenas de guerrilheiros em troca dos reféns. Mais de cem pessoas presas por se envolver com grupos armados de oposição ao governo foram soltas nesses quatro sequestros. José Jobim: O diplomata
Como foi a ação da luta armada na qual embaixador suíço foi trocado por libertação de 70 presos políticos, enfurecendo regime militar O horóscopo do embaixador suíço Giovanni Bucher avisou para ele não sair de casa naqueles dias. Mas, ariano que nunca acreditara em previsões astrológicas, o diplomata acordou às 7h30, tomou o seu café da manhã (mamão e biscoitos com geleia) e deixou sua residência, na Rua Campo Belo, em Laranjeiras, no Rio, conduzido pelo motorista Ercílio Geraldo e acompanhado também pelo agente federal Helio Carvalho Araújo, rumo à embaixada de seu país, no bairro da Glória. "Ainda estou aqui": A morte de Rubens Paiva e a busca de uma mulher pela verdade Ancelmo Gois: Filme sobre crime da ditadura supera marca de 500 mil espectadores Quando estavam na Rua Conde de Baependi, um automóvel Aero Willys estacionado no lado esquerdo da via arrancou e parou atravessado diante do Buick azul do embaixador. No primeiro instante, Bucher pensou que se tratava de um acidente leve, mas, então, um homem com uma metralhadora apareceu a sua janela. Começava, naquela segunda-feira, dia 7 de dezembro de 1970, o mais longo sequestro de um diplomata realizado por guerrilheiros da luta armada contra a ditadura militar no Brasil. O episódio está sendo resgatado pelo filme "Ainda estou aqui", em cartaz nos cinemas. Dirigido pelo cineasta Walter Salles, o longa-metragem conta a história do casal Rubens e Eunice Paiva. Em janeiro de 1971, agentes da repressão mataram o engenheiro durante uma sessão de tortura, esconderam o corpo dele e criaram uma farsa para acobertar o crime. Presa e interrogada durante dez dias, Eunice dedicou sua vida a criar os cinco filhos deles e a descobrir a verdade sobre o seu marido. Acervo O GLOBO: Todas as edições do jornal desde 1925 digitalizadas para sua pesquisa "Ainda estou aqui" começa reconstruindo o clima de relativa tranquilidade na casa da família, na Praia do Leblon. Em certo momento, Rubens e Eunice se mostram apreensivos quando um telejornal noticia o sequestro de Bucher. O engenheiro havia sido um deputado federal cassado pelo regime. Ele tinha contato com pessoas que estavam na luta armada. A ação contra o diplomata suíço gerava temor de que os agentes da ditadura pudessem bater na porta do casal para chegar aos sequestradores. 'Ainda estou aqui': Selton Mello e Fernanda Torres vivem o casal Rubens e Eunice Paiva Divulgação Foi o que aconteceu. No dia 16 de janeiro de 1971, Bucher em solto troca da libertação de 70 presos políticos. O episódio representou um baque para o regime, e os órgãos de repressão fecharam o cerco em torno das pessoas que tinham qualquer ligação com guerrilheiros. No dia 20 de janeiro, feriado de São Sebastião, seis agentes da Aeronáutica entraram na residência da família Paiva e levaram o ex-deputado para prestar um depoimento. Foi a última vez em que Eunice viu o marido vivo ou morto. Bernardo Mello Franco: Caso Rubens Paiva ilustra transição incompleta para democracia A morte de Marighella: Como foi a emboscada policial que executou guerrilheiro na ditadura Realizado por sete integrantes do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o sequestro do embaixador suíço foi liderado por Carlos Lamarca, o capitão do Exército que abandonara a farda em 1969, deixando o 4º Regimento de Infantaria, em Osasco, São Paulo, numa kombi com mais de 60 fuzis FAL do arsenal militar para abastecer a luta armada. Era um dos homens mais procurados pela ditadura, considerado um traidor da pior espécie pelos oficiais das Forças Armadas. A ação na Rua Conde de Baependi não durou mais que três minutos. Ao ver o grupo se aproximando, o agente Hélio Araújo saiu do carro do diplomata com sua pistola MAB calibre 765 e tentou reagir, mas foi atingido por dois tiros (ele morreria no Hospital Miguel Couto, dias depois). Em seguida, as armas dos sequestradores foram apontadas para o motorista Ercílio Geraldo, que se jogou no chão gritando "Não me matem, tenho família para criar". Poupado, o chofer correu para se esconder numa obra. "Apesar de você": O drible de Chico Buarque na censura durante auge da repressão O embaixador assistia a tudo de olhos arregalados no banco de trás. Eram 8h45 daquela segunda-feira quando os sequestradores enfiaram Bucher num Volks vermelho que saiu cantando pneus, deixando para trás vários panfletos com um manifesto no qual a VPR assumia a autoria da ação. Perito analisa carro do embaixador da Suíça sequestrado Eurico Dantas/Agência O GLOBO Sequestrar diplomatas fazia parte da estratégia da luta armada, que, àquela altura, já havia feito o mesmo com representantes de Estados Unidos, Japão e Alemanha. Era uma forma de deixar o regime acuado. Para findar o constrangimento nas relações com os países das vítimas, os militares aceitavam libertar até dezenas de guerrilheiros em troca dos reféns. Mais de cem pessoas presas por se envolver com grupos armados de oposição ao governo foram soltas nesses quatro sequestros. José Jobim: O diplomata morto após falar em corrupção na ditadura Madre Maurina: Uma freira presa e torturada durante o regime militar Enquanto a apreensão tomava conta do centro de poder do país, o clima no cativeiro era amenizado pela personalidade do refém. Aos 57 anos, o embaixador era um cara brincalhão que adorava o Brasil, onde vivia desde 1964. Numa reportagem publicada no dia seguinte ao sequestro, O GLOBO contou como a mãe do diplomata reagiu, no telefone, ao saber do ocorrido: "Ah, ele vai se divertir muito com isso", disse ela, que considerava o filho um "aventureiro". O então guerrilheiro Alfredo Sirkis, que completou 20 anos durante o sequestro, ficou "de guarda" na casa da Rua Taracatu, em Rocha Miranda, Zona Norte do Rio, onde Bucher era mantido. No livro "Os carbonários" (1998), Sirkis conta que o refém era "bonachão, prosador, dotado de um fino, e por vezes, ferino senso de humor. Foi cativando até os mais durões e stalinistas". Teve até festa de réveillon na casa, com a presença de vizinhos que, sem saber, dançaram com Lamarca e outros guerrilheiros. Presos políticos libertados em troca de Bucher, antes de embarque para o Chile Paulo Rubens Fonseca/Agência O GLOBO Houve momentos de tensão. A VPR enviara uma lista de 70 presos que deveriam ser soltos, mas os militares não aceitaram tirar da cadeia 13 dos relacionados. Os guerrilheiros trocaram os nomes, mas, em seguida, o governo alegou que 18 presos se negavam a sair do país naqueles termos. Contrariada, a direção da VPR decidiu que Bucher deveria ser morto. Foi Lamarca quem impediu. Àquela altura, o ele e o diplomata já formavam uma dupla imbatível nos intermináveis jogos de biriba no cativeiro. No fim das contas, 70 presos políticos foram libertados, banidos do país pela ditadura e enviados para o Chile. Dois dias depois, Bucher foi deixado, antes do amanhecer, numa rua da Penha. Ele voltou para casa no mesmo Buick azul da embaixada que usava no momento do sequestro. No dia 17 de janeiro de 1971, o diplomata reuniu a imprensa para uma entrevista. Ele se emocionou ao lamentar a morte do agente Hélio Araújo, mas exibiu seu espírito brincalhão em outros instantes. Bucher contou que, no dia 13 de dezembro, ele assistia a um jogo na TV entre Cruzeiro e Atlético- MG ao lado de um sequestrador. Quando Tostão fez um gol pelo time azul, seu "carcereiro" deu um grito para celebrar, assustando outro que descansava no quarto ao lado. Ao ouvir o berro, o sequestrador que estava no outro cômodo pensou que o embaixador estava fugindo e "entrou na sala totalmente nu e encapuzado, com um revólver na mão", segundo descreveu o diplomata à imprensa. Ao fim da sua descrição sobre o cativeiro, o estrangeiro do signo de Áries decidiu ler seu horóscopo da primeira semana de dezembro, quando foi sequestrado: "Atenção, carneiro. Muito cuidado, tem lobo rondando a zona do agrião. Não saia de casa e guarde bem tudo o que é seu. A verdade é que para os que nasceram sob este signo, a situação está mais para jacaré que para colibri", terminou o diplomata, antes de acrescentar: "Apesar disso, continuo não acreditando em horóscopos". O embaixador Giovanni Bucher durante entrevista após sua libertação Jorge Peter/Agência O GLOBO
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