'Ainda estou aqui': A morte de Rubens Paiva e a luta de uma mulher pela verdade
Como foi o crime da ditadura que deu origem ao filme de Walter Salles, em cartaz nos cinemas O engenheiro Rubens Paiva estava na casa onde ele morava com a família, na Praia do Leblon, no Rio, quando seis agentes da Aeronáutica entraram armados pela porta da cozinha dizendo que iam levá-lo para prestar um depoimento. Deputado federal cassado pela ditadura militar, casado e pai de cinco filhos, Paiva pediu com toda calma para eles baixarem as armas, vestiu um terno, colocou o relógio no pulso e saiu dirigindo o seu próprio carro, escoltado por dois agentes. 'Ainda estou aqui': Fernanda Torres em interpretação minuciosa, sem exageros Eles ainda estão aqui: Filhos de Eunice e Rubens falam sobre filme de Walter Salles Foi a última vez que Eunice Paiva, a mulher do engenheiro, viu o seu marido vivo ou morto. Naquela quarta-feira, 20 de janeiro de 1971, os militares torturam o ex-deputado de 41 anos até a morte, esconderam o corpo dele e armaram uma farsa pra acobertar o crime. Acervo O GLOBO: Todas as edições do jornal desde 1925 para você pesquisar Agora, mais de 53 anos depois, o filme "Ainda estou aqui", do diretor Walter Salles, em cartaz nos cinemas, resgata os acontecimentos aquele feriado de São Sebastião e reconstrói a luta de Eunice para provar que o marido foi assassinado pelo Estado. O ator Selton Mello interpreta o ex-deputado, enquanto Fernanda Torres dá vida a Eunice, com uma participação de sua mãe, Fernanda Montenegro. O longa se baseia no livro de mesmo nome, escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal. 'Ainda estou aqui': Selton Mello e Fernanda Torres vivem o casal Rubens e Eunice Paiva Divulgação Rubens Paiva foi eleito deputado em 1962 pelo PTB, mesmo partido do então presidente da República, João Goulart. Em 1964, quando Jango estava sendo deposto pelo golpe militar de 31 de março, Paiva fez um discurso histórico na Rádio Nacional convocando trabalhadores do país para uma greve contra a conspiração. "Julgamos indispensável que todo o povo se mobilize tranquila e ordeiramente em defesa da legalidade prestigiando a ação reformista do presidente João Goulart...", disse ele. Carlos Marighella: Como foi a morte do guerrilheiro em uma emboscada policial Carlos Lamarca: O capitão do Exército que trocou a farda por liderança da luta armada Menos de dez dias depois, o parlamentar teve o mandato cassado pelo primeiro ato institucional do regime, juntamente com outros 40 deputados federais. Ele se exilou na embaixada da Iugoslávia e depois foi para a Europa. Mas, depois de seis meses, Paiva pegou um voo para Buenos Aires com o objetivo de encontrar Jango e Leonel Brizola. Numa escala em São Paulo, desembarcou dizendo para a tripulação que ia comprar cigarros, mas foi pra casa e pegou até a família de surpresa ao chegar. 'Apesar de você': O drible de Chico Buarque na censura dos militares Durante anos, o ex-deputado se manteve fora do radar, trabalhando como um próspero engenheiro, vivendo com a mulher e os filhos. Diretor do filme "Ainda estou aqui", Walter Salles era amigo de uma filha de Rubens e frequentava a casa da família. Ele transportou para o cinema o clima de alegria e confraternização dos Paiva. Lembro de uma casa aberta aos amigos, luz entrando pelas janelas, dos ecos de diferentes turmas que se mesclavam", disse o cineasta em entrevista recente ao GLOBO. Rubens Paiva entre a mulher, a mãe e os filhos Reprodução/Álbum de família Mas paz da família acabou de forma brutal quando os agentes levaram o ex-deputado para a base no Santos Dummont. Ele foi colocado frente a frente com duas mulheres que haviam sido presas depois de voltar de Santiago, onde elas tinham visitado parentes opositores da ditadura que tavam exilados no Chile. Uma das mulheres tinha na bagagem uma carta pra Rubens Paiva, que foi considerado um possível integrante do MR-8, grupo do qual fazia parte o guerrilheiro Carlos Lamarca. Lauro Jardim: "Ainda estou aqui" foi visto por 50 mil pessoas na noite de estreia Anna Luiza Santiago: Compare os atores de "Ainda estou aqui" com as figuras reais O ex-parlamentar não pertencia ao MR-8, mas tinha ajudado pessoas ligadas ao grupo a fugir do Brasil. Depois de ser espancado, o engenheiro foi levado à sede do temido Destacamento de Operações de Informações (DOI), em um quartel do Exército na Tijuca, onde ele morreu depois de horas agonizando. Os militares criaram uma versão oficial mentirosa dizendo que Paiva tinha sido raptado por terroristas em uma emboscada no Alto da Boa Vista, quando ele estava em um carro sob custódia dos agentes. Depois de passar dez dias presa, a mulher dele, Eunice Paiva, começou uma luta pra descobrir o que tinha acontecido com o marido, acionando o governo, o Congresso Nacional e até a Justiça Militar. Mas, um a um, os seus pleitos esbarravam na falta de vontade política de investigar o caso. Na busca pela verdade, Eunice se formou em Direito na Universidade Mackenzie e se engajou em causas sociais, confrontando, por exemplo, a política indigen
Como foi o crime da ditadura que deu origem ao filme de Walter Salles, em cartaz nos cinemas O engenheiro Rubens Paiva estava na casa onde ele morava com a família, na Praia do Leblon, no Rio, quando seis agentes da Aeronáutica entraram armados pela porta da cozinha dizendo que iam levá-lo para prestar um depoimento. Deputado federal cassado pela ditadura militar, casado e pai de cinco filhos, Paiva pediu com toda calma para eles baixarem as armas, vestiu um terno, colocou o relógio no pulso e saiu dirigindo o seu próprio carro, escoltado por dois agentes. 'Ainda estou aqui': Fernanda Torres em interpretação minuciosa, sem exageros Eles ainda estão aqui: Filhos de Eunice e Rubens falam sobre filme de Walter Salles Foi a última vez que Eunice Paiva, a mulher do engenheiro, viu o seu marido vivo ou morto. Naquela quarta-feira, 20 de janeiro de 1971, os militares torturam o ex-deputado de 41 anos até a morte, esconderam o corpo dele e armaram uma farsa pra acobertar o crime. Acervo O GLOBO: Todas as edições do jornal desde 1925 para você pesquisar Agora, mais de 53 anos depois, o filme "Ainda estou aqui", do diretor Walter Salles, em cartaz nos cinemas, resgata os acontecimentos aquele feriado de São Sebastião e reconstrói a luta de Eunice para provar que o marido foi assassinado pelo Estado. O ator Selton Mello interpreta o ex-deputado, enquanto Fernanda Torres dá vida a Eunice, com uma participação de sua mãe, Fernanda Montenegro. O longa se baseia no livro de mesmo nome, escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho do casal. 'Ainda estou aqui': Selton Mello e Fernanda Torres vivem o casal Rubens e Eunice Paiva Divulgação Rubens Paiva foi eleito deputado em 1962 pelo PTB, mesmo partido do então presidente da República, João Goulart. Em 1964, quando Jango estava sendo deposto pelo golpe militar de 31 de março, Paiva fez um discurso histórico na Rádio Nacional convocando trabalhadores do país para uma greve contra a conspiração. "Julgamos indispensável que todo o povo se mobilize tranquila e ordeiramente em defesa da legalidade prestigiando a ação reformista do presidente João Goulart...", disse ele. Carlos Marighella: Como foi a morte do guerrilheiro em uma emboscada policial Carlos Lamarca: O capitão do Exército que trocou a farda por liderança da luta armada Menos de dez dias depois, o parlamentar teve o mandato cassado pelo primeiro ato institucional do regime, juntamente com outros 40 deputados federais. Ele se exilou na embaixada da Iugoslávia e depois foi para a Europa. Mas, depois de seis meses, Paiva pegou um voo para Buenos Aires com o objetivo de encontrar Jango e Leonel Brizola. Numa escala em São Paulo, desembarcou dizendo para a tripulação que ia comprar cigarros, mas foi pra casa e pegou até a família de surpresa ao chegar. 'Apesar de você': O drible de Chico Buarque na censura dos militares Durante anos, o ex-deputado se manteve fora do radar, trabalhando como um próspero engenheiro, vivendo com a mulher e os filhos. Diretor do filme "Ainda estou aqui", Walter Salles era amigo de uma filha de Rubens e frequentava a casa da família. Ele transportou para o cinema o clima de alegria e confraternização dos Paiva. Lembro de uma casa aberta aos amigos, luz entrando pelas janelas, dos ecos de diferentes turmas que se mesclavam", disse o cineasta em entrevista recente ao GLOBO. Rubens Paiva entre a mulher, a mãe e os filhos Reprodução/Álbum de família Mas paz da família acabou de forma brutal quando os agentes levaram o ex-deputado para a base no Santos Dummont. Ele foi colocado frente a frente com duas mulheres que haviam sido presas depois de voltar de Santiago, onde elas tinham visitado parentes opositores da ditadura que tavam exilados no Chile. Uma das mulheres tinha na bagagem uma carta pra Rubens Paiva, que foi considerado um possível integrante do MR-8, grupo do qual fazia parte o guerrilheiro Carlos Lamarca. Lauro Jardim: "Ainda estou aqui" foi visto por 50 mil pessoas na noite de estreia Anna Luiza Santiago: Compare os atores de "Ainda estou aqui" com as figuras reais O ex-parlamentar não pertencia ao MR-8, mas tinha ajudado pessoas ligadas ao grupo a fugir do Brasil. Depois de ser espancado, o engenheiro foi levado à sede do temido Destacamento de Operações de Informações (DOI), em um quartel do Exército na Tijuca, onde ele morreu depois de horas agonizando. Os militares criaram uma versão oficial mentirosa dizendo que Paiva tinha sido raptado por terroristas em uma emboscada no Alto da Boa Vista, quando ele estava em um carro sob custódia dos agentes. Depois de passar dez dias presa, a mulher dele, Eunice Paiva, começou uma luta pra descobrir o que tinha acontecido com o marido, acionando o governo, o Congresso Nacional e até a Justiça Militar. Mas, um a um, os seus pleitos esbarravam na falta de vontade política de investigar o caso. Na busca pela verdade, Eunice se formou em Direito na Universidade Mackenzie e se engajou em causas sociais, confrontando, por exemplo, a política indigenista do governo durante os anos 1970. Eunice Paiva em março de 1988 Silvio Correa/Agência O GLOBO O mistério do "desaparecimento" de Paiva, porém, só foi resolvido depois do fim da ditadura. Em 1986, numa entrevista à revista "Veja", o psiquiatra Amilcar Lobo, que tinha sido tenente-médico durante o regime, disse que tinha vista o engenheiro quase morto numa sala do quartel na Tijuca. Dias depois, a professora Cecília Viveiros de Castro, uma das mulheres presas ao voltar do Chile, em 1971, contou ao GLOBO que foi levada ao DOI em um carro com Rubens Paiva e viu que ele estava ensanguentado. Edson Luís: Como a morte do estudante mudou a História do Brasil Censura na saúde: A epidemia que a ditadura tentou esconder do povo Com a aprovação da Lei dos Desaparecidos, em 1996, Eunice finalmente obteve o atestado de óbito do marido, após 25 anos. Em 2014, durante a Comissão Nacional da Verdade, que promoveu a apuração de crimes cometidos por militares da ditadura, uma reportagem do GLOBO baseada em depoimentos de ex-agentes envolvidos revelou que o corpo de Paiva fora enterrado em um terreno baldio no Alto da Boa vista e, dois anos depois, levado à praia dos Recreio dos Bandeirantes, antes de ser jogado no mar. No mesmo ano, a Justiça Federal acolheu uma ação do Ministério Público Federal e tornou réus cinco ex-agentes acusados de matar o engenheiro e ocultar seu cadáver. Àquela altura, Eunice já vivia numa luta contra os sintomas do mal de Alzheimer. Ativista social, fundadora do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (IAMA), ela morreu em 2018, aos 86 anos, considerada uma heroína entre a militância que trabalha, até os dias de hoje, para revelar os abusos da ditadura.
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