'Nós somos uma nação de degoladores', diz Micheliny Verunschk na Flip
Mesa que uniu a autora de 'O som do rugido da onça' e Odorico Leal tratou do que pode a ficção diante de uma realidade cada vez mais inverossímil A literatura é a forma narrativa mais apta a compreender um país repleto de contradições? Essa pergunta abriu a mesa “Descobrimento ao contrário”, que juntou, nesta sexta-feira (11), os escritores Odorico Leal e Micheliny Verunschk na 22ª Festa Literária de Paraty (Flip). A conversa foi mediada pela editora, crítica literária e curadora Rita Palmeira. E se João do Rio fosse mulher? Flanar pela cidade, como fazia o cronista, ainda hoje é difícil para elas Leilão de poema de Jorge Amado é suspenso após manifestação de herdeiros: 'Não atestamos sua autenticidade e ineditismo' Leal é cearense, tradutor e acaba de lançar seu primeiro livro, a antologia de contos “Nostalgias canibais” (Âyiné). Micheliny é pernambucana, tem uma longeva carreira nas letras e é autora de títulos como “O som do rugido da onça” (Companhia das Letras), romance premiado com o Jabuti. Os dois autores às vezes recorrem à ficção para revisitar a história brasileira. Leal abriu o debate dizendo que a ideia de que a literatura é habilidosa para tratar de contradições é “esperançosa”. Ele lembrou que a realidade anda “tão paródica”, que “fica difícil de manejá-la literariamente”. Como exemplo, citou o sucesso de Pablo Marçal na eleição paulistana e o episódio em que o ex-coach acusou a família da candidata Tabata Amaral de levar o pai dela ao suicídio. O escritor Odorico Leal na Flip Alexandre Cassiano — A literatura tem que trabalhar com o verossímil. As pessoas buscam na literatura algumas consonâncias que apontem para alguma coisa inteligível, que tornem as coisas mais inteligíveis pela sugestão, mais do que a expressão ou a resolução das contradições da realidade, que são irresolvíveis — comentou Leal. — A literatura é a melhor maneira de trabalhar isso? Como escritor, é melhor que eu diga que sim. Micheliny concordou que os escritores têm cada vez mais dificuldade para lidar com a realidade. — Nós, herdeiros da colonialidade, vivemos numa espécie de mundo suspenso, não conseguimos resolver o passado, que está sempre dando retorno. Você vê o noticiário e tem pessoas com placas dizendo “Família, tradição e propriedade”. Que mundo é esse? Onde eu estou? — disse a autora. — Como lidar com esse real cada vez mais movediço, mais craquelado? Como o escritor, você tem que reorganizar a sua mirada para poder responder a essas questões. Não sei se a literatura tem todos os elementos para responder a isso, mas ela pode colocar questões, fabular em cima disso, criar novos problemas. Quando mais a gente problematiza, mais soluções criativas a gente encontra. Léonora Miano: 'Falta o Ocidente aceitar que estamos dentro dele', diz autora camaronesa convidada da Flip A mediadora lembrou que um dos temas que une os dois autores é o canibalismo. A antropofagia aparece em várias obras de Micheliny e é o fio condutor do conto “Paraíso canibal”, de Leal, que é protagonizado por um indígena que come carne humana não só por razões ritualísticas, mas porque gosta mesmo. Micheliny disse que usa o canibalismo como imagem do que é simultaneamente “belo” e “signo do horror”. — Nas práticas antropofágicas, temos algo que nos funda como país e que é ao mesmo tempo terrível e mágica. O canibalismo pega o que o inimigo tem de melhor, tem uma coisa romântica aí. Quando o canibal come o outro, ele come também sua força, sua capacidade heroica, seus sonhos. Isso é muito bonito, se tirarmos o nosso olhar ocidentalizado — afirmou. — Mas esse é também o lugar do terrível. Nós somos uma nação de degoladores, da degola do inimigo. Nesta Flip que almeja aliar a discussão literária à reflexão sobre o presente, a mediadora conseguiu pinçar recursos utilizados pelos autores em suas obras para ampliar a discussão. Um dos contos de Leal, por exemplo, usa a harmonização facial proposta a um personagem feio como símbolo, disse ele, das “soluções cosméticas” aventadas para solucionar os problemas brasileiros, como o “identitarismo patriótico”. Na obra de Micheliny, ela destacou a recorrência do fogo para simbolizar a misoginia e a discussão que a autora propõe sobre intolerância religiosa. — A sociedade odeia a mulher, o corpo da mulher, a alteridade que a mulher representa. Não é só feminicídio. A realidade se tornou mais ficcional que a ficção, porque não basta matar, é preciso destruir e arruinar tudo o que esse indivíduo significa. Eu acredito com muita força que não é possível passar por isso com um olhar naturalizado. Temos que nos comover verdadeiramente por cada uma dessas vidas perdidas — opinou ela, que também comentou o tratamento dado à religião em seus romances. — A fé é preciosa, mas a instrumentalização da fé nós temos que investigar, observar e provavelmente combater. Pelo bem da democracia.
Mesa que uniu a autora de 'O som do rugido da onça' e Odorico Leal tratou do que pode a ficção diante de uma realidade cada vez mais inverossímil A literatura é a forma narrativa mais apta a compreender um país repleto de contradições? Essa pergunta abriu a mesa “Descobrimento ao contrário”, que juntou, nesta sexta-feira (11), os escritores Odorico Leal e Micheliny Verunschk na 22ª Festa Literária de Paraty (Flip). A conversa foi mediada pela editora, crítica literária e curadora Rita Palmeira. E se João do Rio fosse mulher? Flanar pela cidade, como fazia o cronista, ainda hoje é difícil para elas Leilão de poema de Jorge Amado é suspenso após manifestação de herdeiros: 'Não atestamos sua autenticidade e ineditismo' Leal é cearense, tradutor e acaba de lançar seu primeiro livro, a antologia de contos “Nostalgias canibais” (Âyiné). Micheliny é pernambucana, tem uma longeva carreira nas letras e é autora de títulos como “O som do rugido da onça” (Companhia das Letras), romance premiado com o Jabuti. Os dois autores às vezes recorrem à ficção para revisitar a história brasileira. Leal abriu o debate dizendo que a ideia de que a literatura é habilidosa para tratar de contradições é “esperançosa”. Ele lembrou que a realidade anda “tão paródica”, que “fica difícil de manejá-la literariamente”. Como exemplo, citou o sucesso de Pablo Marçal na eleição paulistana e o episódio em que o ex-coach acusou a família da candidata Tabata Amaral de levar o pai dela ao suicídio. O escritor Odorico Leal na Flip Alexandre Cassiano — A literatura tem que trabalhar com o verossímil. As pessoas buscam na literatura algumas consonâncias que apontem para alguma coisa inteligível, que tornem as coisas mais inteligíveis pela sugestão, mais do que a expressão ou a resolução das contradições da realidade, que são irresolvíveis — comentou Leal. — A literatura é a melhor maneira de trabalhar isso? Como escritor, é melhor que eu diga que sim. Micheliny concordou que os escritores têm cada vez mais dificuldade para lidar com a realidade. — Nós, herdeiros da colonialidade, vivemos numa espécie de mundo suspenso, não conseguimos resolver o passado, que está sempre dando retorno. Você vê o noticiário e tem pessoas com placas dizendo “Família, tradição e propriedade”. Que mundo é esse? Onde eu estou? — disse a autora. — Como lidar com esse real cada vez mais movediço, mais craquelado? Como o escritor, você tem que reorganizar a sua mirada para poder responder a essas questões. Não sei se a literatura tem todos os elementos para responder a isso, mas ela pode colocar questões, fabular em cima disso, criar novos problemas. Quando mais a gente problematiza, mais soluções criativas a gente encontra. Léonora Miano: 'Falta o Ocidente aceitar que estamos dentro dele', diz autora camaronesa convidada da Flip A mediadora lembrou que um dos temas que une os dois autores é o canibalismo. A antropofagia aparece em várias obras de Micheliny e é o fio condutor do conto “Paraíso canibal”, de Leal, que é protagonizado por um indígena que come carne humana não só por razões ritualísticas, mas porque gosta mesmo. Micheliny disse que usa o canibalismo como imagem do que é simultaneamente “belo” e “signo do horror”. — Nas práticas antropofágicas, temos algo que nos funda como país e que é ao mesmo tempo terrível e mágica. O canibalismo pega o que o inimigo tem de melhor, tem uma coisa romântica aí. Quando o canibal come o outro, ele come também sua força, sua capacidade heroica, seus sonhos. Isso é muito bonito, se tirarmos o nosso olhar ocidentalizado — afirmou. — Mas esse é também o lugar do terrível. Nós somos uma nação de degoladores, da degola do inimigo. Nesta Flip que almeja aliar a discussão literária à reflexão sobre o presente, a mediadora conseguiu pinçar recursos utilizados pelos autores em suas obras para ampliar a discussão. Um dos contos de Leal, por exemplo, usa a harmonização facial proposta a um personagem feio como símbolo, disse ele, das “soluções cosméticas” aventadas para solucionar os problemas brasileiros, como o “identitarismo patriótico”. Na obra de Micheliny, ela destacou a recorrência do fogo para simbolizar a misoginia e a discussão que a autora propõe sobre intolerância religiosa. — A sociedade odeia a mulher, o corpo da mulher, a alteridade que a mulher representa. Não é só feminicídio. A realidade se tornou mais ficcional que a ficção, porque não basta matar, é preciso destruir e arruinar tudo o que esse indivíduo significa. Eu acredito com muita força que não é possível passar por isso com um olhar naturalizado. Temos que nos comover verdadeiramente por cada uma dessas vidas perdidas — opinou ela, que também comentou o tratamento dado à religião em seus romances. — A fé é preciosa, mas a instrumentalização da fé nós temos que investigar, observar e provavelmente combater. Pelo bem da democracia.
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