'Eu não amo meu filho por causa do gênero, eu o amo porque ele é meu filho': mãe narra desafios até conseguir retificar o caçula no Rio
Theo iniciou a transição social em 2021 e, atualmente, celebra a mudança do nome e do gênero nos documentos Certa vez, quando foi organizar o armário do caçula, Camila Andrade foi surpreendida ao encontrar recortes de embalagens de brinquedos escondidos nas gavetas. Eram imagens de carrinhos, bonecos, peões, pedaços dos presentes que os dois mais velhos ganhavam. Preocupada, Camila foi investigar a situação. Procurou pelo filho, então com 5 anos, e o chamou para uma conversa — sabendo, de antemão, que não seria fácil. Entre soluços de choro, ele reforçou que preferia ser tratado no masculino e questionou o porquê de ter nascido menina. Parada LGBTQ+ em Copacabana: verifique as mudanças no trânsito Duda Beat e Diego Martins: veja algumas das atrações da 29ª Parada LGBTQ+ em Copacabana Camila não pôde falar que foi pega de surpresa pelo filho. Desde os três anos, ele já demonstrava desconforto com o universo feminino (rosa, laços, vestidos, bonecas) e curiosidade sobre aquele em que viviam os irmãos. Para a mãe, uma das situações mais marcante foi vê-lo chorar, copiosamente, ao entrar num casamento vestido como daminha de honra. Natural de uma pequena cidade litorânea de Pernambuco, a família de Theo, atualmente com 11 anos, é engajada no processo de transição dele. Desde 2021, ele faz acompanhamento gratuito e especializado em saúde trans na capital de São Paulo e, em outubro passado, conquistou a retificação dos documentos no Rio, junto a outras 17 crianças. Todas essas conquistas começaram a partir de uma mudança de mentalidade em Camila, que encontrou ajuda, primeiro, na internet: “Eu coloquei no Google: ‘minha filha quer ser menino’, e descobri ali que existiam crianças como o Theo. Apareceu o site Minha Criança Trans, e eu entrei em contato com a Thamirys (presidente da organização) no mesmo dia. Conversamos por vídeo, eu chorei muito e entendi melhor o que eu podia fazer pelo meu filho. Meu coração foi se acomodando. De forma gradativa, permiti que o Theo cortasse o cabelo, mas continuasse vestindo roupa de menina. Parasse de usar saia, mas continuasse usando legging. Não tinha mais blusinha rosa, nem de babado, mas ainda, sim, feminina. Essa resistência mudou quando Theo começou a fazer acompanhamento multidisciplinar em São Paulo, pelo SUS. Em Pernambuco, a gente não conseguiu ter acesso a esse serviço, ficamos esperando por mais de um ano para ter essa assistência em outro estado. Quando chegamos na consulta, Theo, que já estava com quase 8 anos, falou que queria ser como eu por dentro, mas como o pai por fora. O médico olhou para mim e perguntou assim: ‘vocês aguentam sofrer por mais quanto tempo?’ Eu fiquei mal, pensei ‘realmente, não adianta isso de falar que é muito pequeno’. Quando eu tinha 8 anos, não tinha dúvidas quanto a minha expressão de gênero, então, por que eu estava duvidando do que meu filho falava? Assim, entendi que não tinha a ver com o meu orgulho ou felicidade, tinha a ver com a vida dele. Eu não amo meu filho por causa do gênero, eu não amo meu filho porque ele é educado, porque ele tira notas boas, eu o amo porque ele é meu filho. Esse pensamento me ajudou muito no processo de amadurecimento, de entender que aquilo é a vida dele, e que era mais importante ele ser feliz, do que o meu desejo de ter uma filha menina. Naquele mesmo dia da consulta, eu pedi desculpa para ele. Falei que iria amá-lo do mesmo jeito, sendo menina ou menino. Quando voltamos para Pernambuco, já tínhamos decidido mudar tudo para ele. Já em casa, eu abri o guarda-roupa dele e pedi para ele tirar tudo o que não gostava. Ele tirou tudo, não ficou nada no guarda-roupa. Foi quando eu percebi que as calças jeans, a blusinha xadrez meio rosinha, já não eram suficientes. Decidimos ir em uma loja e, nossa, foi tão incrível, ele ficou tão feliz, eu não esqueço! A gente chegou, ele olhou para mim e ficou esperando eu dizer o que ele mais aguardava: ‘pode ir na seção de menino’. Parecia que ele tinha ganhado a mega-sena da virada! Ele perguntou cheio de alegria: ‘eu posso comprar quantas coisas?’. Eu respondi: ‘escolhe quantas você quiser e, no final, a gente vê’. Ele voltou com tudo de menino, bermudinha, blusinha, boné. Foi muito lindo! Até aquele momento, ele ainda não havia escolhido outro nome. Quando chegou o aniversário dele, ele pediu para não escrever o dele no bolo, porque ainda era feminino. Eu disse para ele, mesmo um pouco relutante: ‘olha, você sabia que pode mudar de nome?’. No início, ele ficou um pouco sem jeito, mas depois começamos a pesquisar, juntos, opções para ele. Ficamos um dia inteiro analisando 100 nomes de menino. A lista reduziu para 20, até sobrarem três: Mateus, Felipe e Theo. Depois de uns dias de teste, ele escolheu o último. Theo costuma afirmar que é a criança mais feliz do mundo, mas eu não tenho como dizer que a vida dele é perfeita. Ele sofre muito. Em quatro anos de transição, ele mudou quatro vezes de escola. Em Pernambuco, a retificação só pode ser feita a partir
Theo iniciou a transição social em 2021 e, atualmente, celebra a mudança do nome e do gênero nos documentos Certa vez, quando foi organizar o armário do caçula, Camila Andrade foi surpreendida ao encontrar recortes de embalagens de brinquedos escondidos nas gavetas. Eram imagens de carrinhos, bonecos, peões, pedaços dos presentes que os dois mais velhos ganhavam. Preocupada, Camila foi investigar a situação. Procurou pelo filho, então com 5 anos, e o chamou para uma conversa — sabendo, de antemão, que não seria fácil. Entre soluços de choro, ele reforçou que preferia ser tratado no masculino e questionou o porquê de ter nascido menina. Parada LGBTQ+ em Copacabana: verifique as mudanças no trânsito Duda Beat e Diego Martins: veja algumas das atrações da 29ª Parada LGBTQ+ em Copacabana Camila não pôde falar que foi pega de surpresa pelo filho. Desde os três anos, ele já demonstrava desconforto com o universo feminino (rosa, laços, vestidos, bonecas) e curiosidade sobre aquele em que viviam os irmãos. Para a mãe, uma das situações mais marcante foi vê-lo chorar, copiosamente, ao entrar num casamento vestido como daminha de honra. Natural de uma pequena cidade litorânea de Pernambuco, a família de Theo, atualmente com 11 anos, é engajada no processo de transição dele. Desde 2021, ele faz acompanhamento gratuito e especializado em saúde trans na capital de São Paulo e, em outubro passado, conquistou a retificação dos documentos no Rio, junto a outras 17 crianças. Todas essas conquistas começaram a partir de uma mudança de mentalidade em Camila, que encontrou ajuda, primeiro, na internet: “Eu coloquei no Google: ‘minha filha quer ser menino’, e descobri ali que existiam crianças como o Theo. Apareceu o site Minha Criança Trans, e eu entrei em contato com a Thamirys (presidente da organização) no mesmo dia. Conversamos por vídeo, eu chorei muito e entendi melhor o que eu podia fazer pelo meu filho. Meu coração foi se acomodando. De forma gradativa, permiti que o Theo cortasse o cabelo, mas continuasse vestindo roupa de menina. Parasse de usar saia, mas continuasse usando legging. Não tinha mais blusinha rosa, nem de babado, mas ainda, sim, feminina. Essa resistência mudou quando Theo começou a fazer acompanhamento multidisciplinar em São Paulo, pelo SUS. Em Pernambuco, a gente não conseguiu ter acesso a esse serviço, ficamos esperando por mais de um ano para ter essa assistência em outro estado. Quando chegamos na consulta, Theo, que já estava com quase 8 anos, falou que queria ser como eu por dentro, mas como o pai por fora. O médico olhou para mim e perguntou assim: ‘vocês aguentam sofrer por mais quanto tempo?’ Eu fiquei mal, pensei ‘realmente, não adianta isso de falar que é muito pequeno’. Quando eu tinha 8 anos, não tinha dúvidas quanto a minha expressão de gênero, então, por que eu estava duvidando do que meu filho falava? Assim, entendi que não tinha a ver com o meu orgulho ou felicidade, tinha a ver com a vida dele. Eu não amo meu filho por causa do gênero, eu não amo meu filho porque ele é educado, porque ele tira notas boas, eu o amo porque ele é meu filho. Esse pensamento me ajudou muito no processo de amadurecimento, de entender que aquilo é a vida dele, e que era mais importante ele ser feliz, do que o meu desejo de ter uma filha menina. Naquele mesmo dia da consulta, eu pedi desculpa para ele. Falei que iria amá-lo do mesmo jeito, sendo menina ou menino. Quando voltamos para Pernambuco, já tínhamos decidido mudar tudo para ele. Já em casa, eu abri o guarda-roupa dele e pedi para ele tirar tudo o que não gostava. Ele tirou tudo, não ficou nada no guarda-roupa. Foi quando eu percebi que as calças jeans, a blusinha xadrez meio rosinha, já não eram suficientes. Decidimos ir em uma loja e, nossa, foi tão incrível, ele ficou tão feliz, eu não esqueço! A gente chegou, ele olhou para mim e ficou esperando eu dizer o que ele mais aguardava: ‘pode ir na seção de menino’. Parecia que ele tinha ganhado a mega-sena da virada! Ele perguntou cheio de alegria: ‘eu posso comprar quantas coisas?’. Eu respondi: ‘escolhe quantas você quiser e, no final, a gente vê’. Ele voltou com tudo de menino, bermudinha, blusinha, boné. Foi muito lindo! Até aquele momento, ele ainda não havia escolhido outro nome. Quando chegou o aniversário dele, ele pediu para não escrever o dele no bolo, porque ainda era feminino. Eu disse para ele, mesmo um pouco relutante: ‘olha, você sabia que pode mudar de nome?’. No início, ele ficou um pouco sem jeito, mas depois começamos a pesquisar, juntos, opções para ele. Ficamos um dia inteiro analisando 100 nomes de menino. A lista reduziu para 20, até sobrarem três: Mateus, Felipe e Theo. Depois de uns dias de teste, ele escolheu o último. Theo costuma afirmar que é a criança mais feliz do mundo, mas eu não tenho como dizer que a vida dele é perfeita. Ele sofre muito. Em quatro anos de transição, ele mudou quatro vezes de escola. Em Pernambuco, a retificação só pode ser feita a partir dos 18 anos. Então, ele usa o documento social, mas precisa do registro de nascimento, ainda feminino, para fazer matrículas. Chega um momento em que a própria escola vaza a informação de que o Theo é trans, e aí ele começa a sofrer muito. As mães não convidam ele para os aniversários dos filhos. Não deixam os filhos brincarem com ele. Theo não pôde participar da formatura do Ensino Fundamental porque as mães não queriam que ele dançasse com suas filhas, e a escola não aceitou mudar o modelo de dança. Eu também já fui expulsa do grupo de mães do WhatsApp. O Theo me conta tudo. Uma vez, disse que, enquanto estava almoçando com os amiguinhos, uma menina chegou perto e falou: ‘vocês sabiam que todos aqui são meninos, mas ele é uma menina vestida de menino?’. Depois, ela pegou o prato do almoço e jogou em cima dele. Theo também já apanhou de algumas crianças, ficou todo roxo. Os colegas de turma já afastaram a roupa dele para ver qual genitália ele tem. Isso aconteceu no banheiro. Ele desenvolveu um medo tão grande de voltar naquele lugar que começou a segurar o xixi por mais de 10 horas. Agora, ele trata com fisioterapia um problema na bexiga, como se fosse uma atrofia, sabe? E eu não posso exigir que ele use o banheiro da escola. Infelizmente, não estou lá para protegê-lo, e não tem ninguém que o faça. Hoje, ele só consegue ir à escola duas ou três vezes por semana, e eu não me sinto no direito de exigir mais. O que eu vou dizer para ele? ‘Vai, meu filho, vai ser legal!’. Eu não tenho como garantir essa alegria, dizer que o dia vai ser bom. É um ambiente de sofrimento que o adoece, que o vê como aberração, ao invés de protegê-lo. Eu já fui chamada para ir à escola diversas vezes, mas as famílias das crianças agressoras nunca foram incomodadas. Eu até cheguei a comprar um livro sobre diversidade para que uma professora fizesse a leitura, mas ela disse que só iria fazê-lo se o Theo estivesse em sala, pois assim poderia sanar dúvidas. Eu achei até que ela estava brincando, falei ‘eu acho que você não entendeu, a intenção é expor o tema, e não o Theo’. Eu sempre me esforço para que ele não normalize essas violências, para que ele entenda que isso não é o certo, que ele não deve aceitar o que acontece, porque não é uma realidade que deve ser compreendida como normal. Hoje, eu digo que o meu pior rival é a escola. Eu sonho com o dia em que vou deixá-lo em uma, sabendo que ele vai entrar e sair feliz, que não vai ter ninguém ali dentro que vai desrespeitá-lo. E a retificação veio para isso, sabe? Para que esse dia chegue. Agora, eu posso entregar os documentos do meu filho sem que ninguém questione sua identidade. Fica a critério do Theo contar ou não que ele é trans. Hoje, não precisamos mais explicar o porquê do nome social, pedir pulseira com dois nomes em um hospital (os atendentes e médicos não respeitavam, então, eu tinha que pedir duas identificações). As famílias de crianças trans sofrem muito no Brasil, pessoas trans no geral, na verdade. É um discurso de ódio muito fomentado pela religiosidade, pelo fundamentalismo religioso, pautado na defesa da família. Enquanto ligarem a pauta das crianças trans à ideologia de gênero, nossos filhos continuarão em sofrimento. Eu frequentava igreja antes da transição do meu filho. Fui expulsa depois que descobriram o que estava acontecendo na minha casa. O pastor chegou a fazer um pronunciamento nas redes sociais dele, dizendo que pessoas trans não existiam. Eu continuo acreditando em Deus, o Theo, inclusive, acredita também. Antes de fazer a retificação no Rio, por exemplo, ele fez uma oração agradecendo a Deus pela conquista. Quando fomos ao hospital em São Paulo, ele achava que o médico era Deus, porque ele tinha realizado o sonho que ele manifestava nas orações, de começar a ser acompanhado e cuidado conforme o gênero masculino. O Theo é muito especial. Ele tem essa vivência de violenta, mas continua sendo um doce. É super educado, gentil, é um gato! Sei que ele vai arrasar corações quando for mais velho! Meu papel hoje é semear flores para que ele as colha no futuro, e seja uma pessoa muito feliz". *Camila Andrade em depoimento à Bruna Martins
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