Como a imigração, de italianos a argelinos, tornou a pizza mais popular que o crepe na francesa Marselha
Com características próprias e restaurantes centenários, redonda é o prato preferido da segunda maior cidade do país Em uma noite de temperatura amena em Marselha, a segunda maior cidade da França, multidões circulam pelas ruas com tons de grafite do bairro central de Cours Julien. Os prédios são salpicados de cores, como se o Mediterrâneo tão próximo tivesse vazado e deixado para trás pigmentos de um arco-íris despedaçado. Marselha: conheça o museu abre as portas uma vez por mês a visitantes nus (mas não descalços) Sul da França: roteiro de bicicleta revela as belezas de um canal construído para ligar dois mares É quase meia-noite. A praça ainda está agitada com pessoas contando piadas e tomando goles de pastis (bebida alcoólica aromatizada com anis). Os restaurantes já estão quase todos fechados, mas um cheiro atraente vem dos balcões abertos, onde o odor de molho de tomate, queijo e massa cozida flutua no ar. — Aqui, a comida da madrugada não é o kebab ou o crepe. É a pizza — me disse meu amigo Simon, natural de Marselha, quando me mudei para a cidade há pouco mais de um ano. Jovens comem pizza à noite na Cours Julien, uma das regiões mais agitadas de Marselha: redonda é o prato preferido da segunda maior cidade francesa France Keyser/The New York Times A pizza de Marselha tem uma crosta mais dura do que a napolitana, que é macia. Normalmente, é feita com queijo Emmental em vez de muçarela. Alguns dizem que isso se deve ao fato de o Emmental ser mais facilmente disponível na região; outros juram que é por ser mais salgado e gostoso. Os fabricantes de pizza frequentemente trocam o manjericão provençal por orégano e, às vezes, jogam alho cru por cima. A fatia clássica de Marselha é a moitié-moitié (meio-meio), torta coberta de tomate, com anchovas de um lado e queijo do outro. A do tipo armênia tem carne moída, cebola e pimentão. A fatia do tipo corsa leva salsicha doce figatelli e queijo brousse, que é semelhante à ricota. E a pizza halal está disponível em Noailles, bairro perto do porto. Essa variedade de tipos de pizza reflete a própria cidade. Os italianos trouxeram a pizza para Marselha pela primeira vez no fim do século XIX e, desde então, ondas de imigrantes, de lugares como a Armênia, a Córsega e a Argélia, abraçaram o prato e deram a ele seu toque. — Não é muito diferente de outras grandes cidades portuárias industriais. O que torna Marselha especial, talvez um pouco como Nova York, é que há uma espécie de cosmopolitismo: a cidade pensa em si mesma como um caldeirão cultural — afirmou Céline Regnard, historiadora local. Marselha é um mosaico de pessoas, cultura e história. E a pizza é uma maneira de explorar esse mosaico. 'Pizza que tem um passado' Clientes nas mesas ao ar livre da La Bella Pizza, uma das muitas casas de Marselha que servem o prato, que chegou ao sul da França com imigrantes italianos há mais de cem anos France Keyser/The New York Times Imigrantes italianos chegaram em grandes quantidades a Marselha no fim do século XIX e no início do século XX. Muitos desembarcaram em Le Panier, o distrito mais antigo da cidade, e lá abriram restaurantes como La Bella Pizza, a primeira pizzaria registrada da cidade. Joséphine Roccaro e seu marido administravam uma fazenda na Sicília antes de se mudarem para Marselha em algum momento da década de 1920 — sua família não tem certeza do ano exato. Inicialmente, Roccaro vendia pizza na rua em uma caixa de madeira. Foi só em 1924 que ela abriu a La Bella Pizza. O restaurante original não existe mais. Mas, perto do Cours Julien, uma discreta porta preta se abre para o burburinho constante de uma sala mal iluminada e lotada de pessoas. Taças de vinho tilintam como sinos ao vento. O pizzaiolo torce e gira a massa, tendo ao fundo um forno quente com chamas. O espaço é estreito, mas quando o tempo está bom — o que acontece a maior parte do ano em Marselha — os clientes vão para o terraço. A La Bella Pizza atual é administrada por Romain Sapienza, de 34 anos, tataraneto dos fundadores. Durante nossa visita recente, Sapienza saiu de trás do balcão exibindo um sorriso hospitaleiro. Informou que abriu o restaurante em 2021 depois de passar anos trabalhando em um escritório. Estava ansioso para usar as mãos, e disse isso fazendo o movimento de sovar a massa de pizza. Prato servido na La Bella Pizza, uma das mais tradicionais de Marselha France Keyser/The New York Times Ele cresceu em uma cidade próxima. A casa de seus pais e a de seus avós — que ficavam a menos de 800 metros de distância uma da outra — eram equipadas com fornos de pizza no quintal, contou, enquanto mostrava fotos antigas que guarda em seu celular. Em uma das fotos, a família está reunida em volta de uma mesa de plástico branca coberta com uma toalha pintada com motivos florais, e sua avó aparece cortando uma pizza. Sapienza disse que, na década de 1960, os avós eram donos de um restaurante em Marselha, mas o nome era outro. Era um local muito particular onde traficantes de drogas e cafet
Com características próprias e restaurantes centenários, redonda é o prato preferido da segunda maior cidade do país Em uma noite de temperatura amena em Marselha, a segunda maior cidade da França, multidões circulam pelas ruas com tons de grafite do bairro central de Cours Julien. Os prédios são salpicados de cores, como se o Mediterrâneo tão próximo tivesse vazado e deixado para trás pigmentos de um arco-íris despedaçado. Marselha: conheça o museu abre as portas uma vez por mês a visitantes nus (mas não descalços) Sul da França: roteiro de bicicleta revela as belezas de um canal construído para ligar dois mares É quase meia-noite. A praça ainda está agitada com pessoas contando piadas e tomando goles de pastis (bebida alcoólica aromatizada com anis). Os restaurantes já estão quase todos fechados, mas um cheiro atraente vem dos balcões abertos, onde o odor de molho de tomate, queijo e massa cozida flutua no ar. — Aqui, a comida da madrugada não é o kebab ou o crepe. É a pizza — me disse meu amigo Simon, natural de Marselha, quando me mudei para a cidade há pouco mais de um ano. Jovens comem pizza à noite na Cours Julien, uma das regiões mais agitadas de Marselha: redonda é o prato preferido da segunda maior cidade francesa France Keyser/The New York Times A pizza de Marselha tem uma crosta mais dura do que a napolitana, que é macia. Normalmente, é feita com queijo Emmental em vez de muçarela. Alguns dizem que isso se deve ao fato de o Emmental ser mais facilmente disponível na região; outros juram que é por ser mais salgado e gostoso. Os fabricantes de pizza frequentemente trocam o manjericão provençal por orégano e, às vezes, jogam alho cru por cima. A fatia clássica de Marselha é a moitié-moitié (meio-meio), torta coberta de tomate, com anchovas de um lado e queijo do outro. A do tipo armênia tem carne moída, cebola e pimentão. A fatia do tipo corsa leva salsicha doce figatelli e queijo brousse, que é semelhante à ricota. E a pizza halal está disponível em Noailles, bairro perto do porto. Essa variedade de tipos de pizza reflete a própria cidade. Os italianos trouxeram a pizza para Marselha pela primeira vez no fim do século XIX e, desde então, ondas de imigrantes, de lugares como a Armênia, a Córsega e a Argélia, abraçaram o prato e deram a ele seu toque. — Não é muito diferente de outras grandes cidades portuárias industriais. O que torna Marselha especial, talvez um pouco como Nova York, é que há uma espécie de cosmopolitismo: a cidade pensa em si mesma como um caldeirão cultural — afirmou Céline Regnard, historiadora local. Marselha é um mosaico de pessoas, cultura e história. E a pizza é uma maneira de explorar esse mosaico. 'Pizza que tem um passado' Clientes nas mesas ao ar livre da La Bella Pizza, uma das muitas casas de Marselha que servem o prato, que chegou ao sul da França com imigrantes italianos há mais de cem anos France Keyser/The New York Times Imigrantes italianos chegaram em grandes quantidades a Marselha no fim do século XIX e no início do século XX. Muitos desembarcaram em Le Panier, o distrito mais antigo da cidade, e lá abriram restaurantes como La Bella Pizza, a primeira pizzaria registrada da cidade. Joséphine Roccaro e seu marido administravam uma fazenda na Sicília antes de se mudarem para Marselha em algum momento da década de 1920 — sua família não tem certeza do ano exato. Inicialmente, Roccaro vendia pizza na rua em uma caixa de madeira. Foi só em 1924 que ela abriu a La Bella Pizza. O restaurante original não existe mais. Mas, perto do Cours Julien, uma discreta porta preta se abre para o burburinho constante de uma sala mal iluminada e lotada de pessoas. Taças de vinho tilintam como sinos ao vento. O pizzaiolo torce e gira a massa, tendo ao fundo um forno quente com chamas. O espaço é estreito, mas quando o tempo está bom — o que acontece a maior parte do ano em Marselha — os clientes vão para o terraço. A La Bella Pizza atual é administrada por Romain Sapienza, de 34 anos, tataraneto dos fundadores. Durante nossa visita recente, Sapienza saiu de trás do balcão exibindo um sorriso hospitaleiro. Informou que abriu o restaurante em 2021 depois de passar anos trabalhando em um escritório. Estava ansioso para usar as mãos, e disse isso fazendo o movimento de sovar a massa de pizza. Prato servido na La Bella Pizza, uma das mais tradicionais de Marselha France Keyser/The New York Times Ele cresceu em uma cidade próxima. A casa de seus pais e a de seus avós — que ficavam a menos de 800 metros de distância uma da outra — eram equipadas com fornos de pizza no quintal, contou, enquanto mostrava fotos antigas que guarda em seu celular. Em uma das fotos, a família está reunida em volta de uma mesa de plástico branca coberta com uma toalha pintada com motivos florais, e sua avó aparece cortando uma pizza. Sapienza disse que, na década de 1960, os avós eram donos de um restaurante em Marselha, mas o nome era outro. Era um local muito particular onde traficantes de drogas e cafetões jantavam ao lado do chefe de polícia e dos turistas. A pizza da La Bella Pizza é feita no estilo de Marselha, coberta com alho fresco; a fatia deve ser crocante o suficiente para ser segurada com três dedos — polegar, indicador e médio. Deve ser dura na parte inferior e macia por dentro, explicou Sapienza: — A pizza de Marselha tem um passado. Podemos sentir a história, a humanidade e a cultura por meio da comida e de como ela é degustada. Onde 'o caminhão' manda Cliente pede uma fatia no Pizza JD, um dos muitos food trucks que vendem o prato nas ruas de Marselha, na França France Keyser/The New York Times A pizza para viagem é um grande negócio em Marselha; mais de 50 caminhões circulam pela cidade, estacionando em locais diferentes, dependendo do dia. As pessoas levam pizza para a praia e para os bares, às vezes oferecendo pedaços para quem estiver por perto. Quando o time de futebol da casa, o Olympique de Marseille, joga uma partida, parece que todos na cidade têm uma fatia na mão. Muitos até comem enquanto se movimentam, o que é uma raridade na França, onde se sentar para as refeições é um gesto quase religioso. Às quintas-feiras, geralmente a partir das 16h, o caminhão branco de Bruno Lafaurie, de 48 anos, tesoureiro do sindicato local de caminhoneiros de pizza, estaciona em frente à igreja Notre-Dame du Mont, a poucos passos da La Bella Pizza. Naquela tarde, o atendente de Lafaurie estava em um momento especial atrás do balcão do caminhão que se abre para a rua. Ele se movimentava em um ritmo intenso, fazendo com que as várias tarefas que executava parecessem uma dança inconsciente e sem esforço. Pegou um pedido, girou e deslizou uma torta para fora do forno, girou de volta para o balcão e alcançou os guardanapos. Serviu os clientes, voltou para a geladeira, pegou um monte de massa e jogou sobre o balcão, amassando, esticando, passando molho, espalhando queijo e, finalmente, deslizando a rodela para dentro do forno. Faz 15 anos que Lafaurie comanda essa operação deliciosa, mas difícil de definir. — Não tem nome. "O Caminhão", o nome é esse — ele comentou enquanto tomávamos um café. Pizza Bianca, um dos mais de 50 food trucks que vendem pizza nas ruas de Marselha, no sul da França France Keyser/The New York Times É mais provável que, nesses caminhões na rua, você encontre as pizzas do tipo Córsega e Armênia. De qualquer forma, os menus da rua são mais variados do que os dos restaurantes com mesas. — Cada onda de imigração adiciona sua pedra ao edifício. Toda pizza tem influências de sua época —disse Lafaurie. A Place Sébastopol é repleta de cafés e mercearias especializadas, e há um mercado que funciona nas manhãs de sábado. É lá que um caminhão estacionado, o Pizza Bianca, oferece um menu com mais de 50 tipos de pizzas, inteiras ou fatiadas. A crosta da pizza corsa é fina e firme, mas não é tão crocante. O queijo adiciona uma cremosidade leve e salgada ao molho, e a salsicha é como mel. Mais ou menos no meio do caminho entre a Pizza Bianca e a Cours Julien, fica o caminhão amarelo do Pizza JD que tem uma variedade similar de ofertas. Foi aqui que Anthony Bourdain e o chef Eric Ripert fizeram pizza no episódio "Lugares desconhecidos: Marselha". A crosta é grossa e macia, e as fatias são grandes. A pizza armênia, cujos pimentões verdes e vermelhos complementam a carne moída e as cebolas, está listada na categoria "tradicional" do menu. Uma história de amor com anchova e muçarela Clientes fazem fila em frente a uma das três unidades da Pizza Charly em Marselha: restaurante, comandado pela mesma família há 60 anos, oferece pizzas halal France Keyser/The New York Times Marselha tem inúmeros lugares despretensiosos que podem ter mais pizzas em exposição do que mesas. Um deles, a Pizza Charly — loja fundada há mais de 60 anos pela mesma família, que agora tem três filiais na cidade —, se tornou uma instituição local. A Pizza Charly original fica perto do Marché de Noailles — o mercado central a que se chega descendo a colina do Cours Julien. A canção "Can't get you out of my head" de Kylie Minogue estava tocando em um bar próximo. Eram 10h30m quando fomos lá para uma visita. Os vendedores gritavam o preço da batata e o da abobrinha. "Dê um beijo em seus filhos por mim!", gritou uma mulher de um café para alguém que passava. É uma área onde o msemen, pão achatado oriundo do norte da África, é mais comum do que a baguete. Nabya Alioui, de 67 anos, trabalha na pizzaria. Nesse dia, estava em uma mesa do lado de fora da fachada vermelha, embrulhando doces para o Ramadã. Todas as pizzas de Charly são halal (tipo árabe); há fatias com presunto de peru e salsicha merguez, além de queijo e anchova. A crosta é fina como papel, mas firme, não racha quando dobrada, e o molho é feito com ervas. Quase 40 anos atrás, Alioui se mudou da Argélia para Marselha, para o prédio do outro lado da rua, e logo começou a sair com um rapaz do andar de baixo, Charly Rodossio, o filho do fundador, que era o dono na época. Cliente prova uma fatia de pizza halal no food truck Pizza JD, em Marselha France Keyser/The New York Times — Nossa história de amor começou quando eu vinha trabalhar aqui à noite — contou Alioui, enquanto servia os clientes. — Foi realmente lindo. Agora, seu filho de 37 anos, Charly Rodossio Jr., é dono do negócio. Quando não estavam na pizzaria, o velho Rodossio e Alioui viajavam pela costa até Nice, Cannes e Monte Carlo. Adoravam o mar. Enquanto embrulhava os doces, contou a história de um amor que, no fim das contas, não durou muito. Suas mãos brilhavam com o mel. Mas foi a pizza que a aproximou da cidade. E, assim como acontece com muitos pizzaiolos, também aproximou a cidade dela. — Conheço Marselha inteira — disse Alioui, enquanto se virava para a próxima cliente e a cumprimentava calorosamente. — Ma chérie!
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