'A falta de amor foi o que me levou a amar tanto o outro', diz sobrevivente da Chacina da Candelária, consultor da série da Netflix sobre o crime
Hoje Snoop Amado é casado, trabalha numa produtora e faz palestras como a prevista para amanhã, na Cidade de Deus Faz mais de 30 anos que aconteceu, mas as marcas permanecem na calçada e na memória. Um dos sobreviventes da chamada Chacina da Candelária, o episódio que vitimou, em 1993, oito jovens em situação de rua, moradores dos arredores da igreja na Avenida Presidente Vargas, José Luiz dos Santos, ou Snoop Amado, hoje dá palestras sobre sua experiência — como a prevista para este fim de semana, na Cidade de Deus — e foi consultor da minissérie recém-lançada pela Netflix “Os quatro da Candelária”, que tem inclusive um personagem, Jesus, inspirado em sua história. "Os quatro da Candelária": Minissérie fala sobre o poder da infância É lei: Paes cria no calendário do Rio data em memória às vítimas da Chacina da Candelária Atualmente mais conhecido como Snoop Amado, ele tinha 15 anos quando escapou do massacre por uma questão de minutos. Quando policiais militares e um ex-policial chegaram atirando nas crianças e nos adolescentes que dormiam na porta da Igreja da Candelária, Snoop estava roubando pão de uma barraquinha de cachorro-quente na Central do Brasil, conta. Roubar era algo frequente na vida do adolescente, que foi abandonado pela mãe aos 5 anos e já tinha passado por mais de 11 abrigos para menores, de onde fugia devido a maus-tratos. A primeira fuga foi da extinta Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), instituição para onde foi levado após ser abandonado pela mãe. Um documento da época registra que a criança morava com a sua mãe e irmã de 3 anos, debaixo de um viaduto da Avenida Presidente Vargas, e que eles pediam esmola na rua. Snoop não se lembra da família. A única memória que guarda deste dia é a do espancamento que sofreu ao chegar à fundação. A chacina Aos 7 anos, ele fugiu da Funabem com o também interno e amigo Sandro do Nascimento, outro sobrevivente da Chacina da Candelária e morto pela polícia em 2000, após sequestrar o ônibus 174, no Jardim Botânico. Ele e Sandro passaram a viver na rua, e o ponto escolhido foi a Igreja da Candelária por conta da sopa que era distribuída no local. Assim, juntaram-se a muitos outros meninos e meninas abandonados ou fugidos de casa e de instituições. — Eu conhecia por nome e apelido todas as crianças que foram mortas. Minha família eram os meus amigos com quem morei na rua e nos orfanatos. Após a fuga da Funabem, a vida de Snoop seguiu entre morar na rua, ser capturado pela polícia e encaminhado de volta para algum orfanato e fugir. Nestas idas e vindas, foi maltratado por funcionários de abrigos, estuprado quatro vezes por outros internos e teve pernas e braços quebrados em agressões. — Não foram as ruas que me ensinaram os males da vida, e sim os orfanatos — afirma. No dia da chacina, quando ouviu as sirenes dos carros da polícia seguindo em direção a Candelária, Snoop pegou um trem para Duque de Caxias e foi se refugiar nos escombros do extinto abrigo Cidade dos Meninos, por onde já tinha passado. Como naquela época a população de rua era registrada, foi encontrado lá pela polícia e lembra-se de ter sido espancado ao longo de todo o caminho da Baixada até a Praça Onze, na Cidade Nova, onde foi levado para a Vara da Infância e da Juventude. Por segurança, depois o menino acabou levado pela embaixada brasileira para fora do país, e ficou três anos na Europa, passando por Suíça, Itália e França. O personagem Jesus, da minissérie "Os quatro da Candelária", inspirado em Snoop Amado Guilherme Leporace/Netflix Oito crianças e adolescentes foram mortos pelos criminosos. Quatro, a tiros, enquanto dormiam na escadaria da igreja. Um foi assassinado ao tentar fugir. Outro morreu dias depois, em decorrência dos ferimentos, e outros dois foram levados de carro até o Aterro do Flamengo, onde foram executados. Nove pessoas foram julgadas pelo crime, sendo três sido condenadas e seis absolvidas. Um lar, enfim Na volta ao Brasil, Snoop foi encaminhado para a Família Santa Clara, instituição de acolhimento infantil, em Vargem Grande. Só então teve paz. Conta ter sido recebido como filho pelo casal Cícero e Eliete de Castro Rosa, que comandava a casa. — Eu senti um carinho tão grande deles por mim, que me dei conta de que finalmente tinha um lar, uma família, uma casa. Minha autoestima era tão baixa que eu me sentia inferior a uma criança. Não conseguia olhar as pessoas —-lembra. Snoop cursou o ensino médio e conheceu na escola sua mulher, Janaína, com quem tem dois filhos, Henrique José, de 22 anos, e Pedro Henrique, de 7. A Rede Globo deu a ele um emprego de motorista de atores de novelas, onde ganhou o apelido pelo qual é conhecido hoje, porque os atores o acharam parecido com o rapper americano Snoop Dogg. O “Amado” veio do seu grande amor pelo próximo. Snoop Amado com a mulher, Janaína, e os filhos José Henrique (à esquerda) e Pedro Henrique Divulgação — A falta de amor na minha criação foi o que me levou a amar tanto o outro. Falo sempre para os m
Hoje Snoop Amado é casado, trabalha numa produtora e faz palestras como a prevista para amanhã, na Cidade de Deus Faz mais de 30 anos que aconteceu, mas as marcas permanecem na calçada e na memória. Um dos sobreviventes da chamada Chacina da Candelária, o episódio que vitimou, em 1993, oito jovens em situação de rua, moradores dos arredores da igreja na Avenida Presidente Vargas, José Luiz dos Santos, ou Snoop Amado, hoje dá palestras sobre sua experiência — como a prevista para este fim de semana, na Cidade de Deus — e foi consultor da minissérie recém-lançada pela Netflix “Os quatro da Candelária”, que tem inclusive um personagem, Jesus, inspirado em sua história. "Os quatro da Candelária": Minissérie fala sobre o poder da infância É lei: Paes cria no calendário do Rio data em memória às vítimas da Chacina da Candelária Atualmente mais conhecido como Snoop Amado, ele tinha 15 anos quando escapou do massacre por uma questão de minutos. Quando policiais militares e um ex-policial chegaram atirando nas crianças e nos adolescentes que dormiam na porta da Igreja da Candelária, Snoop estava roubando pão de uma barraquinha de cachorro-quente na Central do Brasil, conta. Roubar era algo frequente na vida do adolescente, que foi abandonado pela mãe aos 5 anos e já tinha passado por mais de 11 abrigos para menores, de onde fugia devido a maus-tratos. A primeira fuga foi da extinta Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), instituição para onde foi levado após ser abandonado pela mãe. Um documento da época registra que a criança morava com a sua mãe e irmã de 3 anos, debaixo de um viaduto da Avenida Presidente Vargas, e que eles pediam esmola na rua. Snoop não se lembra da família. A única memória que guarda deste dia é a do espancamento que sofreu ao chegar à fundação. A chacina Aos 7 anos, ele fugiu da Funabem com o também interno e amigo Sandro do Nascimento, outro sobrevivente da Chacina da Candelária e morto pela polícia em 2000, após sequestrar o ônibus 174, no Jardim Botânico. Ele e Sandro passaram a viver na rua, e o ponto escolhido foi a Igreja da Candelária por conta da sopa que era distribuída no local. Assim, juntaram-se a muitos outros meninos e meninas abandonados ou fugidos de casa e de instituições. — Eu conhecia por nome e apelido todas as crianças que foram mortas. Minha família eram os meus amigos com quem morei na rua e nos orfanatos. Após a fuga da Funabem, a vida de Snoop seguiu entre morar na rua, ser capturado pela polícia e encaminhado de volta para algum orfanato e fugir. Nestas idas e vindas, foi maltratado por funcionários de abrigos, estuprado quatro vezes por outros internos e teve pernas e braços quebrados em agressões. — Não foram as ruas que me ensinaram os males da vida, e sim os orfanatos — afirma. No dia da chacina, quando ouviu as sirenes dos carros da polícia seguindo em direção a Candelária, Snoop pegou um trem para Duque de Caxias e foi se refugiar nos escombros do extinto abrigo Cidade dos Meninos, por onde já tinha passado. Como naquela época a população de rua era registrada, foi encontrado lá pela polícia e lembra-se de ter sido espancado ao longo de todo o caminho da Baixada até a Praça Onze, na Cidade Nova, onde foi levado para a Vara da Infância e da Juventude. Por segurança, depois o menino acabou levado pela embaixada brasileira para fora do país, e ficou três anos na Europa, passando por Suíça, Itália e França. O personagem Jesus, da minissérie "Os quatro da Candelária", inspirado em Snoop Amado Guilherme Leporace/Netflix Oito crianças e adolescentes foram mortos pelos criminosos. Quatro, a tiros, enquanto dormiam na escadaria da igreja. Um foi assassinado ao tentar fugir. Outro morreu dias depois, em decorrência dos ferimentos, e outros dois foram levados de carro até o Aterro do Flamengo, onde foram executados. Nove pessoas foram julgadas pelo crime, sendo três sido condenadas e seis absolvidas. Um lar, enfim Na volta ao Brasil, Snoop foi encaminhado para a Família Santa Clara, instituição de acolhimento infantil, em Vargem Grande. Só então teve paz. Conta ter sido recebido como filho pelo casal Cícero e Eliete de Castro Rosa, que comandava a casa. — Eu senti um carinho tão grande deles por mim, que me dei conta de que finalmente tinha um lar, uma família, uma casa. Minha autoestima era tão baixa que eu me sentia inferior a uma criança. Não conseguia olhar as pessoas —-lembra. Snoop cursou o ensino médio e conheceu na escola sua mulher, Janaína, com quem tem dois filhos, Henrique José, de 22 anos, e Pedro Henrique, de 7. A Rede Globo deu a ele um emprego de motorista de atores de novelas, onde ganhou o apelido pelo qual é conhecido hoje, porque os atores o acharam parecido com o rapper americano Snoop Dogg. O “Amado” veio do seu grande amor pelo próximo. Snoop Amado com a mulher, Janaína, e os filhos José Henrique (à esquerda) e Pedro Henrique Divulgação — A falta de amor na minha criação foi o que me levou a amar tanto o outro. Falo sempre para os meus filhos que não adianta crescer como uma árvore bonita se não quiser dar fruto e sombra para as pequenas plantas. Existe o propósito de crescer, mas também de fornecer. Eu só sei amar; se não amar, nada vale — afirma, emocionado. Hoje, Snoop trabalha como assistente administrativo em uma produtora audiovisual. Com a vida totalmente refeita, dá palestras em organizações para levar amor e conhecimento a jovens e crianças, como a prevista para este sábado (23), na sede da ONG Nóiz, na Cidade de Deus. Em eventos como esse, Snoop costuma fazer a dinâmica “Sonhos não têm data de validade”, criada por ele e voltada para trabalho em equipe. O jogo foi pensado para conscientizar as crianças sobre a importância do próximo. Funciona assim: com um lençol repleto de balões, os adultos os jogam para cima e os participantes têm que pegar um balão com cada mão e sustentar no alto. Como não conseguirão por muito tempo, podem pedir ajuda às crianças que estão sem balão. No final, todos estão fazendo a mesma função. — Assim também é na jornada da vida. Precisamos de pessoas que nos ajudem e mantenham nossa bola, nosso astral, nossa autoestima no alto. A lição que quero passar é que sempre vamos precisar do próximo e devemos estar à disposição quando precisarem da gente — diz Snoop. A ONG Nóiz Acompanhando de perto as crianças da ONG e atento aos seus desvios, André Melo, fundador e presidente da Nóiz, passou a se preocupar com alguns adolescentes que estavam largando as casas das famílias para ficar ou morar na rua. Conheceu Snoop nas redes sociais e teve a ideia de levá-lo até as crianças para alertá-las sobre os perigos de estar na rua. — O Snoop não teve outra alternativa a não ser a rua, diferente dos jovens da comunidade. Eles têm uma vida muito mais precoce do que as pessoas de fora. A vida sexual é antecipada, e o contato com drogas, prostituição e crimes são regulares na vida dos moradores da Cidade de Deus. Por isso, quis trazê-lo para contar a história dele, mostrar para os jovens que a rua não é fácil e que, diferentemente do Snoop, eles têm casa, família, outra oportunidade na vida — relata Melo. A sede da ONG Nóis, na Cidade de Deus, que atende 250 crianças e adolescentes da comunidade Liane Varsano A organização, criada há seis anos no antigo Brejo, então o lugar mais carente da Cidade de Deus e hoje o Centro de Treinamento do Vasco da Gama, dá suporte a 250 crianças, de 4 a 18 anos, com aulas de balé, teatro, jiu-jítsu, reforço escolar, alfabetização para crianças e adultos e pré-vestibular social, aos sábados. Dezoito alunos atendidos no pré-vestibular da Nóiz já entraram em faculdades públicas. Além disso, 400 famílias são atendidas direta e indiretamente com psicólogo, assistência jurídica e clínica médica, no chamado no Dia da Saúde. Em suas palestras, Snoop procura levar estimular quem o escuta a não perder a fé no futuro, e é o que pretende fazer neste sábado. — Não é fácil para ninguém, mas sonhos não têm data de validade. Então, volte a sonhar — resume sua lição.
Qual é a sua reação?