Em tudo há luz
A esperança está em haver quem a cultive. Em toda parte existem pessoas empenhadas em construir pontes para um futuro mais justo e sustentável Há quase um mês que vagueio de cidade em cidade, primeiro em Portugal, depois no Brasil, para apresentar o meu novo romance, “Mestre dos batuques”. Parte dessa viagem tem sido feita ao lado do escritor moçambicano Mia Couto, também ele com um livro novo — “A cegueira do rio”. Em vários desses encontros com leitores surge a pergunta: — Como manter a esperança diante da escuridão? José Eduardo Agualusa: 'Um escritor que não é inteiramente livre já não é mais um escritor' As pessoas estão assustadas com o atual momento político — o triunfo de Donald Trump nos Estados Unidos; o crescimento do ódio, da violência e da intolerância —, e também com a série de desastres ambientais que se sucedem um pouco por todo o planeta. Na opinião de Mia, as visões mais catastrofistas erram ao impor uma sensação generalizada de impotência. Para o escritor moçambicano seria importante dar idêntico espaço noticioso a todas as iniciativas, grandes e pequenas, a favor da paz, da justiça, e da regeneração do clima e da vida na Terra. Mia tem razão. A esperança está em haver quem a cultive. Em toda parte é possível encontrar pessoas empenhadas em construir pontes para um futuro mais justo e sustentável. Recentemente, viajando pela China, conheci as chamadas cidades-esponja, as quais, graças aos espaços verdes e áreas alagáveis, são capazes de deter e absorver enormes quantidades de água. A tragédia que se abateu sobre Valência, na Espanha, nunca ocorrerá ali. Várias cidades europeias, como Berlim e Copenhague, estão adotando soluções semelhantes. Entre as soluções de combate à seca, gosto muito das belíssimas torres de bambu para recolher água a partir da umidade do ar, concebidas por um engenheiro italiano, Arturo Vittori, e que já estão sendo usadas em várias regiões da Etiópia. Além de úteis e muito baratas, são autênticas esculturas orgânicas. Há alguns anos, de passagem pelo Rio, acordei com dois versos bailando na cabeça: “Sou um ser que ri/ rio de tanto ser”. Levantei-me e escrevi de rajada um breve poema, que, por me parecer uma canção, enviei a um amigo, Pierre Aderne, compositor carioca radicado em Lisboa. Dez minutos mais tarde, o meu amigo enviou-me um arquivo de som — era a canção, já pronta, que hoje integra um dos álbuns dele: “Rua das Pretas — Um copo de fado, dois de bossa nova”. Se Pierre não tivesse musicado o poema, eu já o teria esquecido. No álbum, ele junta a sua voz à da jovem cantora cabo-verdiana Eliana Rosa, num luminoso dueto. Ouvindo-os, volto a lembrar-me daquela madrugada. Na noite anterior eu demorara a adormecer, inquieto, ansioso, porque, como agora, o futuro me parecia então cheio de sombras. Porém, vendo a manhã deslizando sobre o liso esplendor do mar, aqueles dois versos emergiram em mim como uma certeza — somos seres que riem. Estarmos vivos é em si mesmo um milagre que deveríamos festejar a cada dia. Em Angola, durante a guerra civil, conheci um general famoso pela amplitude das suas gargalhadas: “Rio para afastar o medo”, confessava. Eu rio para convocar a luz.
A esperança está em haver quem a cultive. Em toda parte existem pessoas empenhadas em construir pontes para um futuro mais justo e sustentável Há quase um mês que vagueio de cidade em cidade, primeiro em Portugal, depois no Brasil, para apresentar o meu novo romance, “Mestre dos batuques”. Parte dessa viagem tem sido feita ao lado do escritor moçambicano Mia Couto, também ele com um livro novo — “A cegueira do rio”. Em vários desses encontros com leitores surge a pergunta: — Como manter a esperança diante da escuridão? José Eduardo Agualusa: 'Um escritor que não é inteiramente livre já não é mais um escritor' As pessoas estão assustadas com o atual momento político — o triunfo de Donald Trump nos Estados Unidos; o crescimento do ódio, da violência e da intolerância —, e também com a série de desastres ambientais que se sucedem um pouco por todo o planeta. Na opinião de Mia, as visões mais catastrofistas erram ao impor uma sensação generalizada de impotência. Para o escritor moçambicano seria importante dar idêntico espaço noticioso a todas as iniciativas, grandes e pequenas, a favor da paz, da justiça, e da regeneração do clima e da vida na Terra. Mia tem razão. A esperança está em haver quem a cultive. Em toda parte é possível encontrar pessoas empenhadas em construir pontes para um futuro mais justo e sustentável. Recentemente, viajando pela China, conheci as chamadas cidades-esponja, as quais, graças aos espaços verdes e áreas alagáveis, são capazes de deter e absorver enormes quantidades de água. A tragédia que se abateu sobre Valência, na Espanha, nunca ocorrerá ali. Várias cidades europeias, como Berlim e Copenhague, estão adotando soluções semelhantes. Entre as soluções de combate à seca, gosto muito das belíssimas torres de bambu para recolher água a partir da umidade do ar, concebidas por um engenheiro italiano, Arturo Vittori, e que já estão sendo usadas em várias regiões da Etiópia. Além de úteis e muito baratas, são autênticas esculturas orgânicas. Há alguns anos, de passagem pelo Rio, acordei com dois versos bailando na cabeça: “Sou um ser que ri/ rio de tanto ser”. Levantei-me e escrevi de rajada um breve poema, que, por me parecer uma canção, enviei a um amigo, Pierre Aderne, compositor carioca radicado em Lisboa. Dez minutos mais tarde, o meu amigo enviou-me um arquivo de som — era a canção, já pronta, que hoje integra um dos álbuns dele: “Rua das Pretas — Um copo de fado, dois de bossa nova”. Se Pierre não tivesse musicado o poema, eu já o teria esquecido. No álbum, ele junta a sua voz à da jovem cantora cabo-verdiana Eliana Rosa, num luminoso dueto. Ouvindo-os, volto a lembrar-me daquela madrugada. Na noite anterior eu demorara a adormecer, inquieto, ansioso, porque, como agora, o futuro me parecia então cheio de sombras. Porém, vendo a manhã deslizando sobre o liso esplendor do mar, aqueles dois versos emergiram em mim como uma certeza — somos seres que riem. Estarmos vivos é em si mesmo um milagre que deveríamos festejar a cada dia. Em Angola, durante a guerra civil, conheci um general famoso pela amplitude das suas gargalhadas: “Rio para afastar o medo”, confessava. Eu rio para convocar a luz.
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